sábado, 22 de novembro de 2008

Por Pouco - Mundo Livre S/A (2000)


Como dizia Otto, Fred Zero Quatro é a mistura de Jorge Ben com The Clash. Difícil pensar numa combinação como essa, mas isso só se você ainda não ouviu Por Pouco. A variedade de ritmos (rock, reggae, rockabilly) e o discurso politizado do Clash estão presentes. O samba, bossa, samba rock, suíngue, lirismo, safadeza de Jorge Ben, também. A eles coloque-se uma pitada de Tom Zé e, pensando bem, não poderia haver melhor definição para este disco.


E uma palavra que une as três facetas é ironia. Tapa na cara, mas sem luva de pelica, nos melhores momentos, o disco serve de espelho da mediocridade da vida urbana brasileira do início do novo milênio, inútil, manipulada, que vem e vai no trânsito, no Jornal Nacional, no consumismo, no sonho da casa própria e na gostosa que sonhamos inutilmente um dia comer. Essa desilusão ganha um desenho extremamente sarcástico em Por Pouco, herdeira direta de Inútil, do Ultraje a Rigor, anti-hino da derrota das Diretas Já nos 80. Ela é um retrato do Brasil, o país das intenções nunca realizadas, da bola na trave, o país do futuro só que o ano 2000 chegou e a gente estava na mesma.


“Estamos quase sempre otimistas
Tudo vai dar quase certo
Pois o ano esta quase acabando
Depois de termos quase certeza
Que dento em breve teremos um quase alegre carnaval
Por pouco não trouxemos o penta
Quase acertamos na loto
Quase compramos a casa
Quase ganhamos o carro
A moça da banheira ficou quase nua
A gostosa da praia quase dá, não dá.

Desilusão que já está presente desde a primeira música. Com jeito de manifesto, o Mistério do Samba é imperativo em sua desconstrução de tudo o que o samba não é:

“O samba não é carioca

O samba não é baiano

O samba nao é do terreiro

O samba não é africano”

E por aí vai, como se dissesse, o samba é livre, “não tem mistério”, terminando na conclusão perfeita: “E como reza toda tradição, é tudo uma grande invenção”.


Nesse clima de desilusão, o disco encontra um espaço para o amor, em momentos carinhosos e safados. Que nem Mexe Mexe, composta por Jorge Ben, ele mesmo, que é Jorgebeniana até o último fio de cabelo, sem o menor pudor. Começa com uma levadinha no violão, boa de dançar, devagar, difícil não mexer pelo menos a perna embaixo da mesa. Na sequência vem o Melô das Musas, com um elogio explícito a Wânia, a mulher "com um dábliu maiúsculo, um dábliu formidável, bem maior que minha testa", gostosíssima, saindo do mar e “eu não vou sair daqui sem ver ela sair da água”.


Daí o ritmo acelera forte pra Treme-treme, versão de Shackin’ all over, que vira “se tremendo toda”, rock com clima Clashiano, nervoso. “O seu olhar me comanda e manda eu me mexer. E a tremedeira é rebatida pra você”. É nervosa também na ansiedade dele pela conquista e daí a tremedeira passa pra ela, vira um orgasmo.


E depois da transa, do sexo forte, vem aquela relaxada na cama. Meu Esquema, uma bossa suingada, sopros suaves, a declaração de amor mais masculina que conheço: “ela é meu treino de futebol, ela é meu domingão de sol, concerto de rock and roll, torcida gritando gol, playcenter, pista alucinada, inferninho, esporte radical, poderosa viciante, mas não faz mal, o que meu médico receitou, Rivaldo maravilha mandando um gol, minha chapação”. Lendo assim, parece ridículamente machista, mas Fred Zero Quatro dá a ela uma convicção que muda completamente a maneira como a gente entende cada palavra.


Mas esse é um lado do disco. O outro é o do discurso politizado que apesar de às vezes beirar o panfleto, tem também sacadas excelentes. É metralhadora giratória, e sobra pra todo lado: a violência urbana (“Algo me alvejou, ai, olha o sangueiro irm ão, segura que eu vou cair”, no samba Tomzeniano Super Homem Plus); a sociedade de consumo e o mercado (“O mercado vive em guerra... Não há lugar pra escrúpulos... Cedo ou tarde você vai se entregar ao mundo livre, não adianta, não há como escapar”, de Concorra a um Carro); os Estados Unidos em Lourinha Americana; as mega corporações, a Nike, o Congresso, os governos, os partidos e políticos em Batedores.


Dentro desta perspectiva, Por Pouco é o Cabeça Dinossauro dos anos 90. Retratos do país, cada um em seu tempo mostra quem éramos. O Cabeça, mais explícito em sua crítica às instituições, era raivosamente adolescente, portanto mais inocente, como a democracia, que engatinhava. Por Pouco faz o mesmo, mas com um cinismo de quem está ficando adulto, perdendo as ilusões. Pois é claro que nós crescemos, superamos a ressaca do impeachment, ganhamos a guerra contra a inflação, saímos da faculdade e agora precisamos conseguir um emprego, comprar uma casa e constituir família (lembram do início de Trainspotting?). Se sobrar tempo, quem sabe você não continua indo em busca de seus sonhos? Só que a essa altura você já começou a perceber que aquele futuro brilhante que sua mãe e sua avó tinham certeza que te esperava talvez esteja um pouco mais distante do que você pensava ("Droga, foi por pouco!").


Não é fácil olhar pro nosso lado ruim. O Mundo Livre S/A teve a coragem de fazer isso, olhou o país, mastigou, regurgitou e vomitou Por Pouco em nossa cara. A gente pode até não gostar, mas vai ser difícil não se reconhecer nele. E ainda mais interessante é que apesar de toda a desilusão, o disco termina otimista, com as versões para Minha Galera, de Manu Chao, e de Garota de Ipanema, que exaltam coisas simples, como os amigos, a namorada, a praia. E nisso ele não consegue fugir de ser, ele mesmo, um espelho da contradição brasileira, sempre lidando com problemas que não consegue resolver, sonhando com coisas que não consegue ter, mas sempre otimista, exalando sensualidade e sempre disposto a curtir a vida.


Luiz Marcelo

6 comentários:

  1. Tem uma história sobre a contra-capa desse disco que é engraçada. Eles estavam no intervalo de gravação e foram almoçar em um "fuck yourself" perto do estúdio. O dono do restaurante chegou pra eles e perguntou: de que obra vocês são? Hahahaha... O cara achou que eles eram peões de obra. Fred Zero Quatro, sarcástico e anti-herói, decidiu fazer uma brincadeira com isso. As fotos da contra-capa são de atores, propriamente vestidos de popstars (Como diria Gessinger: uma banda numa propaganda de refrigerantes [SIC!]).

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  2. hahaha Essa estória e muito boa! Não conhecia. Bem lembrado! Fred Zero Quatro queria que os atores fossem nos programas de televisão, dublassem as músicas e dessem entrevista.
    Abs, LM

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  3. Gosto muito da banda... Espero que você não se incomode se em breve MLSA beirar a liderança do blogue..: Os três primeiros deles são muito bons! Mas tua resenha tá massa, parabéns. [MATEUS]

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Massa essa Banda pow, e o texto ficou irado... Parabéns

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  6. Valeu Luciano! Mateus, e os primeiros discos?

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