terça-feira, 21 de abril de 2009

Anjo Avesso (Alceu Valença, 1983)


Houve uma época em que Alceu Valença era um artista rebelde e criativo, cheio de boas canções e novas idéias. Este disco faz parte desta época, em que o cantor e compositor pernambucano se aproxima do ápice.

O disco é quase uma continuação de Cavalo de Pau (1982, resenhado aqui também), que arrebentou as rádios no ano anterior com Morena Tropicana, talvez seu maior sucesso até hoje. Como disco, este Anjo Avesso talvez seja ainda melhor que aquele, mais coeso, mais bem acabado, sem perder o pique, o bom-humor e o alto-astral.

A banda de Alceu incluía além da cozinha típica com baixo e bateria, percussão variada, piano e teclados, e o grande amigo, guitarrista e produtor musical, Paulo Rafael que usava timbres ousados para a época. Aqui aparece um convidado muito especial: Zé da Flauta toca em quase todas as faixas.

O disco abre com “Marim dos Caetés”, canção de amor, despedidas e reencontros, onde o destaque é o solo de guitarra-sintetizador executado por Paulo Rafael. “Anunciação” acho que foi a música de trabalho deste disco, eu me lembro de escutá-la no rádio e achar muito esquisita (mas naquela época meu universo se dividia entre Synchronicity, Queen Greatest Hits e os duplos azul e vermelho dos Beatles). Na verdade trata-se de uma bela canção de amor, anunciando a chegada da mulher amada:
Na bruma leve das paixões que vem de dentro / Tu vens chegando pra brincar no meu quintal
No teu cavalo peito nu cabelo ao vento / E o sol quarando as nossas roupas no varal...
Tu vens, tu vens: eu já escuto os teus sinais! / A voz do anjo sussurrou no meu ouvido
Eu não duvido já escuto os teus sinais / Que tu virias numa manhã de domingo
Eu te anuncio nos sinos das catedrais

Trata-se de uma das mais belas canções de Alceu, um primor de letra, curta e direta, com um toque charmoso de lirismo. Segue no mesmo tom, menos lírico, mais sensual em “Rouge Carmin”:
Meu amor tem um beijo guardado pra mim / E a cor do batom é vermelho carmin
Meu amor tem dez dedos cravados em mim / Que me rasga me arranha e me deixa assim
Assim que eu te vi muito louca / Olhei tua boca e ficamos afim
Afim de fazer um pecado / A cor do pecado é Rouge Carmin


“Balança o Coreto” e “Escorregando no Pífano” quebram um pouco o tom mais romântico deste início e fecham o lado A com um toque malicioso e ritmo mais acelerado. Nesta última, onde Alceu divide a autoria com Zé da Flauta, o tocador faz uma alusão erótica ao ato de tocar o pífano:
Balança bole remexe gostoso / Meu jeito é manhoso de te assoprar
Balança bole remexe gostoso / Meu jeito é dengoso de te dedilhar...

O lado B vem com “Filhos da Fonte”, homenagem ao carnaval e “Batendo Tambor”, que traz a especialíssima participação de Clementina de Jesus. E finaliza com “Trovoada” onde de novo o tema é o carnaval de Olinda e seus personagens, e o frevo acelerado de Carlos Fernando, "Anjo Avesso", que dá nome ao disco.

Alceu ainda lançaria mais dois ou três discos bons, mas não faz nem sombra, hoje, ao compositor de Anunciação, Rouge Carmin e Marim dos Caetés. OBS: Até onde eu saiba esse disco NÃO saiu em cd, uma pena. E viva a bolacha!
[M]

Ainda brincando, a aventura continua (Canções Curiosas, Palavra Cantada, 1998)


Porque as crianças crescem, as canções as acompanham. O que era brincadeira vira curiosidade (mas sem deixar de ser totalmente brincadeira) e Paulo Tatit e Sandra Peres conseguem, com maestria mais uma vez, capturar este estado de espírito no fantástico Canções Curiosas.

Em homenagem ao cinquecentenário (putz! essa palavra existe?) do descobrimento o disco abre cantado em português (de Portugal) os versos de “Pindorama”. Em seguida uma composição (incompreensível) de Carlinhos Brown, que toca violão e percussão na faixa “Erê”, deliciosamente cantada pelo Coro das Primas. O disco segue com duas das melhores músicas de Arnaldo Antunes (em qualquer sentido que se considere as composições de Arnaldo!). A primeira delas é uma parceria com Paulo Tatit, “Criança não Trabalha” cuja letra é um simples desfile de palavras (como em O Pulso, dos Titãs) como bola, bicicleta, lápis, caderno, band-aid, sabão, cadarço... intercalado pelo refrão simples, fácil e direto (por isso genial): criança não trabalha, criança dá trabalho!. Em “Cultura”, temos o universo Arnaldiano (desculpem-me pela invenção do termo intelecto-piegas...) perfeitamente adequado ao espírito das canções curiosas, em frases como o girino é o peixinho do sapo, as raízes são as veias da seiva e assim por diante.

“O rato” é a historinha do roedor que queria se casar com a lua, mas acaba ficando com uma ratinha esperta mesmo. O infinito volta em “Trilhares”, de Paulo e Edith Derdyk (antiga colaboradora) que se dão conta (?!) das incontáveis estrelas no céu e grãos de areia numa praia. Em “Fome Come”, o assunto da fome é abordado (a la Comida, Titãs mais uma vez) na sua concepção mais ampla e de uma maneira talvez mais digerível (com o perdão do trocadilho) para o público que outro dia ainda ouvia as canções de brincar. A batida da percussão feita com latas e copos de plástico é um capítulo (e uma brincadeira) à parte. Um par de canções se segue descrevendo o diálogo entre uma boneca esquecida, abandonada e a menina que cresceu e agora tem outros interesses.

Num disco como este é muito difícil falar em ponto alto, mas eventualmente a gente tem uma preferida... Aquela música que a gente ergue o volume do sonzinho, seja lá qual for... Aqui é a homenagem que o santista Paulo Tatit faz ao eterno ídolo. “Pelé” é disparado, a mais bela homenagem musical jamais feita ao rei do futebol e uma das melhores músicas sobre futebol feitas em português, sem ficar nada a dever a qualquer uma das (muitas) canções de Jorge Ben sobre o tema. O sãopaulino Edgar Scandurra fica encarregado da guitarra e o ritmo sugerido por ele e Paulo (violão e baixo) é o de uma saudosista partida dos anos sessenta, narrada-cantada suavemente por Paulo, tempo que o futebol passava só no rádio, não tinha televisão e em que os torcedores iam ao estádio ver o rei jogar e não ficar o tempo todo se xingando e arrumando briga e distribuindo pancadaria.
Ele é, ele é, ele é
O nosso rei da bola, o rei Pelé
Ele é, ele é, ele é
O rei de toda a Terra
Que conquistou a coroa
Pelo toque do seu pé!


O disco termina com “Eu”, uma suposta autobiografia que mistura o norte e o sul do país nas origens do protagonista, e a dispensável “Gramática” que mais parece uma concessão de Paulo a seu irmão Luiz Tatit. O que não tira o brilho de mais um disco fantástico da Palavra Cantada, este Canções Curiosas, que as crianças de 0 a 100 adoram!
[M]

Canções de Brincar, Palavra Cantada (1996)


Palavra Cantada é sinônimo de música de boa qualidade. Eu poderia escrever música de boa qualidade para crianças, restringindo a palavra cantada ao segmento “música infantil”. Mas isso seria por demais injusto e por si só não justificaria sua inserção num blogue com a proposta deste aqui. Primeiro porque de certa forma o trabalho da palavra cantada inaugura uma nova maneira de fazer “música infantil” e segundo porque é de muito boa qualidade a música que fazem, independente do público alvo.

Palavra Cantada é formada por Sandra Peres e Paulo Tatit e mais uma série de músicos de apoio e convidados que incluem estrelas da música brasileira além de filhos, primos, sobrinhos e uma criançada da pesada.

Canções de brincar é uma deliciosa aventura pelo universo da criança e a empatia é imediata. "A pulguinha" que faz cosquinha, a “Sopa” do neném (que ninguém sabe o que tem e que enquanto a mãe vai pondo espinafre, rabanete e agrião, os pequenos vão acrescentando sorvete, jacaré e caminhão...), a “Pipoca”, canção saltitante de Arnaldo Antunes (em cuja banda, durante muito tempo, Paulo Tatit foi baixista), que também contribui com “Água”, canção embalada por percussão africana suave e a aquosa voz de Mônica Salmaso.

Em "Aniversário", a data é comemorada como uma celebração ao crescimento, o moleque sente que (hoje!) cresceu tanto que está do tamanho de um elefante, de um gigante... Em “Ora Bolas”, a bola e o planeta se misturam e se confundem, o pequeno, o grande, e o infinito . E o planeta é uma bola que rebola lá no céu, bola que pula bem no pé, no pé do menino.

Como seria natural de se esperar no universo infantil, bichos aparecem às pencas, seja em “Tá na hora de mamar”, seja relinchando, uivando ou miando como em “É a vez do tamanduá”. Enquanto isso a deliciosa “Pomar" desfila frutas e suas árvores, cantada graciosamente pelas primas acompanhadas de percussão lúdica com pandeiro, reco-reco e artefatos do gênero.

O disco todo é delicioso, costurado com uma precisão e delicadeza incrível por Paulo e Sandra e o exemplar que tem em casa chegou antes da Clara. Daí, quando ela nasceu, já conhecia as músicas desde a barriga...
[M]