sexta-feira, 14 de maio de 2010

Transfiguração - Cordel do Fogo Encantado (2006)


Transfiguração: ato ou efeito de transfigurar-se; transformação; metamorfose.

Transfiguração: mudança na maneira de proceder, de pensar, de sentir.

Transfiguração: Cordel do Fogo Encantado.


Transfiguração é um cenário musical único e exigente. A cadência da fala, a poesia, o sotaque, o timbre da voz, os instrumentos de alguma forma conspiram contra você. Seu ouvido e sua atenção se conectam fielmente ao som, que te agrada, que te perturba, mas que sobretudo, te magnetiza.

É um som-cênico. O Cordel do Fogo Encantado canta o facilmente imaginável, uma música-concreta, poesia-(en)cantada. Herança clara de um passado no palco.

Mas acho que além desse vínculo forte com o teatro, o Cordel tem também uma ligação, que é quase umbilical, com a literatura. A forma de cantar de Lirinha – palavra por palavra, como se ele estivesse sentindo o gosto das vogais, das consoantes - é mistura viva entre música e poesia, camaleônico labirinto. Na verdade é um rio: numa margem a poesia, na outra a música e no meio, no leito, corre a mistura inventiva do Cordel do Fogo Encantado. Fogo que nem água apaga.


O cd começa com o barulho de uma porta de prisão: som pesado, eco, palavras sombrias e sem fôlego. “Aqui” conversa com a literatura e com o cárcere: elementos quase irmãos de uma viagem solitária – mas a música transforma a literatura numa experiência quase corporal:


“vou riscar no meu braço

um pedaço de mar

que você me deixou

e criar outra recordação do primeiro lugar

que acordei pra te ver”


“O Sinal ficou Verde” é escandalosa. É uma invasão, uma coisa meio cangaço, uma conquista. Mas se olhar de perto, grudar teu ouvido, você vai perceber que é da melhor guerra que estão falando. É sobre o domínio do corpo amado.


E vai indo… Transfiguração canta estórias - estória de um homem que sobe numa árvore e que anda mil léguas sobre as folhas e beija sua mulher perto das nuvens…

“Preta” é uma das coisas mais cuidadosas e delicadas que eu já ouvi. A leveza da seda mesclada com o aconchego do xale e a chuva vem pequena, com o seu sonho de água, para lavar o que passou…

“Louco de Deus” . Deus como uma sensação que te faz bem – Transfiguração: mudança na maneira de proceder, de pensar, de sentir – Louco de algo que te faz bem sentir, uma coisa meio colorida, que dá barato.


“O sol rodando vermelho

O sol pregado no azul

O sol redondo no céu

O sol suspenso no ar”


Em “Trans-fi-gu-ra-ção” a gente escuta as palavras deixando os lábios do cantor. A palavra saindo ainda molhada, deixando calmamente a boca para explodir lá fora e ganhar um outro corpo. A paixão é estrada que dói. Metamorfose.

“Lamento das Águas Sagradas” trazendo a brincadeira da cabra-cega: as crianças, a percussão e as palmas. Misteriosa, confusa, linda e sedutora. A mais mangue-beat de todas!

“Morte e Vida Stanley” é um pedaço de cada um de nós: nossos recados sem voz, recôncavo do sol, garras do mundo sem guia.


Transfiguração é um universo desconhecido para mim: um mundo longe, agreste, árido, de sol cor de laranja, mas que estoura em flor e me conquista pelo seu lirismo em carne viva.

[ANDRÉA]

domingo, 9 de maio de 2010

Punk da periferia


Pois é, tem choro, tem rock, tem mpb, tem de tudo por aqui.

Hoje chegou o punk - se bem que já tinha Ratos do Porão. Da periferia, ou melhor das periferias, origem do movimento de massa, depois de devidamente 'criado' a partir de uma boutique inglesa...

O Gil cometeu poucos erros; que eu me lembre, essa música (Punk da periferia) é o pior: apesar da letra realista (mas excessivamente pedagógica), a música em si não tem nada a ver com qualquer tipo de sonoridade ligada ao multifacetado movimento punk.

Mas vamos parar de criticar e começar a celebrar um discão.

Inocentes!!! Até hoje na ativa, pioneiros e íntegros (palavra muito querida, ops, aos punks).

Como já dizia o Clemente (atualmente tocando tb com a Plebe Rude), guitarra/vocal/líder da banda: “Nós estamos aqui para revolucionar a música popular brasileira, pintar de negro a asa branca, atrasar o trem das onze, pisar sobre as flores de Geraldo Vandré e fazer da Amélia uma mulher qualquer". Enfim, punk serve pra incomodar, entre outras coisas. Que o diga meu caro amigo Mateus...

Em 1982, saiu o primeiro registro do punk paulistano (tirando os Replicantes, gaúchos, o punk relevante é paulistano): 'Grito Suburbano', com Inocentes, Cólera e Olho Seco, tosco, primitivo, punk, depois relançado na Alemanha como 'Volks grito'.

Os Inocentes estiveram 2 documentários na época(1982): 'Garotos do subúrbio' de Fernando Meirelles e 'Pânico em SP' de Mário Dalcêndio Jr. Esse título foi utilizado depois (1986) pela banda no disco aqui resenhado.

Antes disso, lançou um disco, 'Miséria e fome', que teve dez de suas treze músicas censuradas e acabou saindo como compacto...

Depois de participar do média metragem 'Punks' de Sarah Yakni e Alberto Gieco, de tocar no antológico festival 'O começo do fim do mundo' (que virou disco coletânea e faz parte do documentário bem posterior do ex-vj Gastão Moreira), de invadir o Circo Voador-RJ com 7 bandas paulistas e mais Paralamas do Sucesso (!!!) e Coquetel Molotov, acabar e voltar com uma proposta de som mais pós-punk (junto com outras bandas do cenário rock Patife Band, Ira!, Mercenárias, Voluntários da Pátria etc), abrirem o primeiro show da Legião no Rio (sempre o Circo Voador, que inclusive passou muito tempo fechado pelo incidente de xingamento do Conde pelo Gordo do RxDxPx, depois da péssima ideia de algum estúpido assessor de comemorar a eleição num show punk), de tocar muito, finalmente em 1986, Branco Mello dos Titãs leva uma demo para a Warner. Ah, a eterna necessidade de padrinhos na música brasileira...

Produzido (muito bem inclusive, gerando como sempre reações dos mais tradicionais punks paulistanos) pelo próprio Branco e Pena Schmidt, sai em 86 'Pânico em SP', na forma de mini-LP, com 6 excelentes músicas. Aliás por que esse formato foi extinto? A Plebe tb lançou 'O concreto já rachou' em EP. Mas o preço era de Lp, claro...

Enfim as músicas:

1. Rotina: começa bem, num crássico q tocam até hoje, riff de guitarra muito legal, 'até quando ele vai aguentar?', tem até um solinho de guitarra no final, heresia punk;

2. Ele disse não: sonoridade bem rock paulista anos 80, fora a 'pronuiincia' de Clemente, sonzaço, tb com solinho;

3. Não acordem a cidade: mais frenética, meio ska, descritiva da noite e de suas criaturas que 'tem vida curta, não importa o que façam, sonhando com Deus e tudo mais', mais uma com solo de guitarra!

4. Salvem El Salvador: não sei se eles ouviram Sandinista do Clash, mas é bem provável, né? Panfletária a música, começa meio climática, depois fica mais rápida, mais um libelo anti-guerra, anti-eua e pró-américa latina. Vcs já ouviram isso antes. Genial é um riff no meio da música simulando uma metralhadora!

5. Expresso oriente: com um riff oriental (dãããã), convida ao passeio pelo oriente. Sem um hummer nem colete eu não vou! A Palestina estava em guerra.

6. Pânico em SP: crássico absoluto, começa com aquele drum'n'bass tipicamente punk fazendo a cama pra guitarra entrar mordendo, o tema antecipa o caos que pode acontecer a qualquer momento (e acabou por acontecer recentemente). 'Pânico em SP', até hoje cantamos a plenos pulmões, 'ô ô ô ô'!!!

Discaço, causou na mídia, como se diria hoje. A banda excursionou bem pelo Brasil, mas as vendas não foram as esperadas pela gravadora. Se alguém quiser, mando pro 4shared!

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Carlos, ERASMO... (1971)


Tem coisa na vida que a gente não entende, mas pelo menos a gente pode tomar como um sinal: domingo de manhã acordei com um email super legal do Baiano pra gente dividir uma resenha do Carlos, Erasmo.
Tudo isso culpa do Mateus.
Bem, o domingo passou e naquela noite eu fui ao concerto da Céu e no meio do show ela começa a cantar uma música do Tremendão - daquele jeito bonito dela de cantar. A música era linda, forte e eu não a conhecia: “É Preciso Dar Um Jeito, Meu Amigo”.
E aí pensei: se essa música estiver no Carlos, Erasmo, tá decidido! Resenho total.
E aqui estamos, Baiano e eu nessa viagem. Porque ao ouvir Carlos, Erasmo a primeira reação é essa: que viagem! Sem dúvida ele estava embarcando total numa viagem única, experimentando aqui e ali. Um Erasmo on the road com muita química percorrendo suas veias…
Naquela época a Jovem Guarda fazia parte do passado, o que o havia relegado ao ostracismo, que veio acompanhado por um processo por porte de drogas. Mas no ano anterior “Sentado à Beira do Caminho” havia estourado na voz de seu parceiro, que estava assumindo de vez o papel de grande cantor romântico brasileiro. Por outro lado a Tropicália havia bagunçado a MPB, misturando rock com samba, hino religioso com hino de time de futebol, guitarra com bossa nova. E Erasmo, que nunca deixou de ser roqueiro, no sentido filosófico, ficou meio perdidão, ali, sem saber direito o que fazer. Tava difícil entender alguma coisa.
Mas precisava? Talvez não. Erasmo deu dois e fez um disco de alma tropicalista, onde coubesse tudo o que sentia e quisesse, sem obrigações, sem precisar assumir falsos papéis ou imagens que não eram a dele. Não queria provar nada a ninguém, apenas fazer um disco honesto, franco, despido (“Eu não nasci pra viver mentindo. Sorrir em troca e morrer fingindo”). E já começa pela capa, uma foto de chapéu, camiseta velha sem mangas, bem hippie, rompendo totalmente com o passado Jovem Guarda. A luz é avermelhada de pôr de sol escaldante, ele sério, inconformado?, preocupado?, perdido?, ou tudo isso? E o nome - Carlos, Erasmo (essa vírgula é um charme!) – daquela maneira acadêmica de citar uma obra, só reforça o lado autoral.
O disco é bem diversificado, com letras e temas incomuns. Tem um pouco de tudo: tem rock, tem soul, funk (Mundo Deserto), contestação (É Preciso dar um Jeito Meu Amigo), tema de novela (Ciça, Cecília - Tema de Cecília), Jorge Ben (Agora Ninguém Chora Mais), Caetano Veloso (De Noite na Cama), Marcos e Paulo Cesar Valle (26 Anos de Vida Normal), Taiguara (na riponga Dois Animais na Selva da Rua Suja), Roberto e Erasmo (Gente Aberta), feminismo (Não Te Quero Santa), apologia à maconha (Maria Joana) ao lado de uma religiosa e curiosamente ambas em parceria com Roberto (Sodoma e Gomorra). Parece que ele estava perdidão e jogou todas as suas contradições no disco.
Como era um momento pessoal, Erasmo se cercou de amigos, não só nas composições, que foram fundamentais pro resultado do disco. Lanny Gordin, guitarrista onipresente entre os Tropicalistas; os Mutantes Sergio Dias, Liminha e Dinho, se multiplicam nas guitarras em riffs pesados, batida pop até solos totalmente blues, da maneira mais triste que se pode ser. Nos arranjos de Rogério Duprat e Chiquinho de Moraes, dão riqueza e diversidade. E nessa onda muitas vezes a percussão fala mais alto que a guitarra e as letras falam mais alto que a música. Muito bom!
Começa com “De Noite Na Cama”, que seduz pela bagunça, pelo tom festivo e pela graça que Erasmo imprime à música – colocou berimbau, surdo, chamou a Narinha e até a Dedé! Malandraço, ele transforma a música num soul-samba-rock delicioso! Cheia de malícia, na melhor linha da pilantragem e que chega a ser mais suingada que a do próprio Simonal, o que, convenhamos, não é uma tarefa das mais fáceis. Sem falar que a letra é um baita convite…
“É Preciso Dar Um Jeito, Meu Amigo” tem a melhor vibe Roberto-Erasmo. Um deslumbre - a música, a letra, a voz, a viagem, a amizade, e também o inconformismo, a contestação:
“Mas estou envergonhado

Com as coisas que eu vi.

Mas não vou ficar calado

No conforto acomodado,

Como tantos por ai.

Descansar não adianta.

Quando a gente se levanta,

Tanta coisa aconteceu.

É preciso dar um jeito meu amigo”.
Clama ele, convocando todo mundo. A liga rock-blues é escandalosa e me desculpe, aqui você não tem outra alternativa a não ser se tornar um escravo voluntário dessa trip.
Muito boa também é “Dois Animais na Selva da Rua” – rockão! – Tem aí uma vontade de reinventar, começar do zero, numa espécie de instinto misturado com sonho, completamente na onda on the road, hippie mesmo. E a música é gostosa , contagiante e te carrega longe…
“Eu vou fazer de você

A ponte erguida pro outro lado da vida.

Eu vou fazer de você

Clareira aberta na selva suja da rua.

Eu não nasci pra viver mentindo,

Sorrir em troca e morrer fugindo.

Por isso somos iguais,

Nós somos dois animais que se aninham, que se amigam...”
E tome mais contestação. Amigar, casar sem a benção da igreja ou autorização do Estado, pecadores ilegais. E daí?, perguntava ele, se na essência somos puro instinto.
E o disco vai rolando, e Carlos, Erasmo vai crescendo, tomando conta dos quatro cantos da casa. E agora tô na curtição do “Mundo Deserto”. Arraso gritado, visceral.
O disco tem potência, tem vigor, tem tesão.
Presente de 2010!

[Marcelo, LUIZ e Melloni, ANDRÉA]

domingo, 2 de maio de 2010

A Letra A - Nando Reis (2003)


“Você pediu

Pra qu’eu fizesse

Um poema

Por você

Como é que eu vou saber

O que você quer me dizer?

Eu quero que você me conte”


Nando Reis. A LETRA A. Uma capa tatuada: a cor, o nome, as letras negras batidas à máquina.

E a vida deu um montão de volta e esse cd veio parar aqui na 22 Mountain Avenue, doce presente.


A letra A é um disco feito sob a minha medida: puro rock viajante, um rápido-lento delicioso, que pede o aconchego do ouvido e movimentos lentos dos ombros e da cabeça num balanço combinado e suave. A letra A captura tua atenção para as letras, para cada palavra, para poesia longa e embaraçada de prosa.


Sabe? É um disco de amor. Mais um disco de amor. É assim que o Nando parece estar confortável, e aí que é o legal! E tudo ele transforma em estória, num mini-cotidiano: o gramado, a casa, a bolsa a tiracolo, a cor do esmalte, os pés nus nas sandálias, as miçangas, os lábios e os olhos.


Nando Reis nesse disco é pontual, olha para um mundo que só os seus olhos alcançam, está à procura das coisas simples ao redor. Ele trata daquele pequeno que é grande. Grande porque está em todos nós.


“Apenas os automóveis

Sem penas se movem, inventam

Certeza é o chão de um imóvel

Prefiro as pernas que me movimentam”


[ANDRÉA]

ps: para NB, mesmo desconfiando de que rock não era sua praia!

sábado, 1 de maio de 2010

Café fresco e quentinho...

Pois é, um disco de chorinho pelo menos dentro de 1001... é o mínimo não? Este Café Brasil pode ser taxado de coletânea (o que na verdade não é), for export (o disco foi encomendado para ser lançado no mercado germânico/europeu) ou seja lá o quê. Pouco importa. Ou talvez até seja for export mesmo para ouvidos brasileiros mais acostumados à avalanche pop-rock que veio nos anos 80.

Não entendo lhufas de chorinho e gosto muito pouco de música instrumental. Uma das poucas exceções é justamente o chorinho. O nome também parece não combinar com a música que sugere alegria ao invés de tristeza, talvez sejam os tons agudos do bandolim e do cavaquinho. (while my guitar gently weeps...). Chorinho que tem gosto de manhã ensolarada de domingo no coreto da praça. Acho mesmo o chorinho mais interessante que o samba e, infinitamente superior a tal da bossa nova. Se o samba fosse uma feijoada, o chorinho seria a couve.

Em Café Brasil o nome pode parecer, cá pra nós, infeliz, mas para os gringos lá faz todo o sentido. Se o chorinho for café, é aquele passado em coador de pano, no fogão à lenha na casa da vó. E servido com rosquinha de polvilho bem fresquinha e broa de fubá no meio da tarde, naquela hora em que você ainda nem percebia que estava com fome...

Ah, o disco. A idéia é simples. Uma seleção de clássicos do choro (e não parece que qualquer chorinho é realmente clássico?) representado por seus maiores compositores, Jacob do Bandolim, Ernesto Nazareth, Pixinguinha, Benedito Lacerda, Waldir Azevedo, Chiquinha Gonzaga, Paulinho da Viola... E de quebra uma seleção de intérpretes que não deixa dúvidas, misturando a virtuose instrumental de Altamiro Carrilho na flauta, Henrique Cazes no cavaquinho, Joel do Nascimento no bandolim, Rildo Hora na harmônica, Maria Teresa Madeira ao piano e claro, e nem poderia deixar de ser diferente, o Conjunto Época de Ouro; artistas que vão se revezando entre as faixas e que são acompanhados aqui e ali por intérpretes que não são tipicamente ligados ao choro como Marisa Monte, Martinho da Vila, João Bosco, Leila Pinheiro e Sivuca.

Os destaques são muitos. Onde sopra Altamiro Carrilho a felicidade é plena, e aqui ele toca em duas faixas. Especialmente em 1 x 0, choro do velho Pixinga, o dueto com o sax de Carlos Malta é de tirar o fôlego. Sarau para Radamés, choro de Paulinho com o próprio no cavaco e Rildo Hora na harmônica; Onde Andarás, de Caetano Veloso e Ferreira Gullar traz Marisa Monte fazendo o que sabe melhor: cantar. Mas o que ficou o chantilly deste café (se a vó fizesse chantilly pra pôr no café) é Sivuca sanfonando em Noites Cariocas, meu choro favorito. Sem açúcar. Mas com muito afeto.

[M]