De gravatinha borboleta, chapéu de lado e bigodinho fino, João Rubinato ficou célebre como Adoniran Barbosa. A imagem é a de um malandro quase às avessas, o sambista que cantou São Paulo, a capital, como ninguém. Primeiro porque a música de Adoniran tem é cheiro de interior (bem, ele nasceu em Jundiaí, viveu tempos em Sto. André...). Segundo porque Adoniran é de um lirismo único, simples e inocente, até mesmo nos momentos em que é mais malandro.
Adoniran fez de tudo um pouco. Pintor, garçom, encanador, metalúrgico, até começar a carreira fazendo novelas de rádio e aos poucos compondo suas primeiras marchinhas carnavalescas lá pelos anos 30, até que iniciasse a sua célebre carreira de compositor nos anos 50, com seus primeiros sucessos. Como a época era de música de rádio e compactos simples, seu primeiro LP só viria a acontecer em 1974, com a regravação de antigos sucessos. Abrigo de Vagabundo abre este disco de “estréia” com a continuação da história da Saudosa Maloca, que legalizada, ninguém pode demolir e é oferecida ao vagabundos que não têm onde dormir. Bom Dia Tristeza, parceria do compositor com o poetinha Vinícius de Moraes, é uma das poucas composições “sérias” de Adoniran, refletida até no arranjo que inclui uma orquestração que acompanha um violão virtuoso, num lamento choroso atípico na obra do sambista. Adoniran convida a própria tristeza a beber com ele na mesa de bar e pede seu ombro como consolo, como se esta tristeza fosse uma pessoa, um companheiro da noite.
As Mariposas é um dos clássicos de Adoniran. Sua malícia aqui é bem humorada, tipicamente Adoniran, que inclui a introdução e um breque falado na sua voz rouca, numa mistura improvável (mas muito bem realizada) de Don Juan com Mazzaropi. Depois deste banho de bom-humor, Adoniran consegue transformar a tragédia da perda de um lar num dos momentos mais líricos e marcantes da música brasileira em Saudosa Maloca.
Iracema que se segue é outro exemplo da poesia de Adoniran. A perda do seu grande amor é narrada de maneira quase cômica, pois a amada morre vinte dias antes do casório por ter atravessado a av. São João na contra-mão. Já Fui uma Brasa é o lamento do artista que saiu de moda e vê ocupar “seu lugar”, outros nomes, outras canções, outras modas. Mesmo lamentando, Adoniran não perde a banca e desafia: eu também um dia já fui uma brasa, ..., mas se assoprar posso acender de novo.
Como o disco é marcado pelo balanço entre canções menos conhecidas e os clássicos do seu repertório, não poderia faltar O Trem das Onze. Esses dias tive que ouvir um comentário que classificava o samba como a história de um otário que prefere voltar pra casa da mãe, do que passar a noite com a namorada. Óbvio que no contexto em que a música foi escrita, outra possibilidade não existia.
Com a corda Mi, do meu cavaquinho
Fiz uma aliança pra ela, prova de carinho
Com uma introdução destas, qualquer música já seria boa. Mas Adoniran é um contador de histórias completo, e narra o sacrifício que é para o boêmio seresteiro se desfazer assim de parte do seu instrumento para dar a sua amada uma Prova de Carinho. Segue a esta um sambão-gafieira chamado Acende o Candieiro, que tem o ritmo acelerado e elementos de sopro. Apaga o Fogo Mané é uma canção de adeus, o poeta sai a procura da mulher (Inês, que o abandonara) na rua, na central, no hospital e no xadrez. A penúltima música é Véspera de Natal que narra a desventura do pai de família que resolveu bancar o papai noel: Ai meu deus que sacrifício! O orifício da chaminé era pequeno... E o disco termina com Deus te Abençôe, um sensível samba que conta a história do filho que rala pra caramba trabalhando de pedreiro que faz questão de mimar a mãe.
Histórias simples de gente do povo, com o sotaque convincente de um artista genuíno. Ave Adoniran! [M]
Dizem que a música "Trem das onze" continua atualíssima.Os pobres não conseguem voltar pra casa de madrugada.Ouvi um candidato a prefeito dizendo que ia botar ônibus e trem correndo a noite toda.Tomara.
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