O time de oito músicos do conjunto Língua de Trapo desfila uma obra prima que inclui, samba, choro, rock, baladas, tango, moda de viola, bolero e discothèque... Exigindo, além da instrumentação básica de banda, outros menos ortodoxos.... Entre os convidados especiais, Zé Rodrix e Tico Terpins completam o time liderado pelos vocais de Pituco e Laerte Sarrumor (Uma vez, num show deles caí na besteira de perguntar se Sarrumor era apelido ou sobrenome. Ele disse que era sobrenome, “Sarro do meu pai e humor da minha mãe”...).
O LP originalmente verde com rótulo amarelo inicia com uma melodia suave de cordas que parece anunciar a história da dona baratinha. De repente o narrador anuncia: Em audição especial, o conjunto... Língua de Trapo!
Este é o tipo de detalhe que torna este disco tão especial. Não só pela seleção musical que apresenta (e já vamos a elas, as músicas), mas pelo tratamento dado ao encarte, à capa e ao LP em si. Detalhes irreconciliáveis com a era do MP3, e até mesmo, pasmem, do CD! O encarte do LP vem com as letras cifradas para acompanhar no violão (muuuuuito antes da Marisa Monte) e com passinhos de dança! Na época, ainda sob o manto do governo militar, os LPs lançados no Brasil vinham, obrigatoriamente, com o carimbo “Disco é Cultura”, carimbo que foi substituído nos discos do Língua por “Disco é Chato”, “Disco é Furado”, “Disco é o Cassete”, “Disco é Supérfluo” (este último faz lembrar a taxação extra que o governo colocou sobre produtos na época taxados como supérfluos, entre os quais se encaixava os discos).
O disco abre com Burrice Precoce, história de amor que conta o que vem depois do final feliz:
Ao lhe pedir em casame-en-to, esqueci de lhe de dizer....
que eu não sou o rapaz norma-al... que você esperava ter...
A levada é de pop-brega irresistível. Segue um Régui Espiritual, catequizando o ouvinte:
Regue sua alma, lave seu espírito
Com límpidas, translúcidas, bolhinhas de amor...
Tragédia Afrodisíaca é um choro que narra a desventura do sujeito que sai “à caça“ sonhando com uma chacrete para terminar a noite em grande estilo. Pra evitar humilhação nosso protagonista decide forrar o estômago com tudo o que é (supostamente) afrodisíaco, catuaba, ovos de codorna, tutano (para aumentar minha energia! Ele confessa, pra lá de mal intencionado)...
Quando eu inda queixava-me da conta lá no hall de entrada aponta
Um monumento de guria (cinco de frente, três de esguia)
Pois bem, nosso herói não perde tempo e parte logo para ação, atacando a nora que mamãe pediu a Deus num táxi que conduz o fogoso casal pro seu chatô em Santo Amaro (a ceia foi no Bixiga, de tal forma que no ponto em que estava nosso herói não dava mesmo pra esperar chegar em casa...). E então, a tragédia se configura:
Depois de mordiscar a sua nuca, vi que ela usava peruca
E que seu nome era João (nas horas vagas, Conceição...)
Xote Bandeiroso é uma homenagem panfletária, música de campanha mesmo para um então candidato ao governo do estado de SP, um nordestino chamado Severino, que depois de ser eleito o “Operário Padrão” (lembram disso?) passa por um processo de politização que inclui a perda de um dedo na prensa e o endurecimento nas negociações com a Fiesp (qualquer semelhança não é mera coincidência). A música termina com o utópico sonho socialista,
Mas eu tenho confiança que esse Brasil-criança um dia inda vai ver
cada um se eleger o Operário Patrão
E esse xote pra lá de bandeiroso se confirmaria, pela metade, aos trancos e barrancos, vinte anos depois... com Severino tornando-se ele, o “operário patrão”.
Concheta é a música clássica do Língua de Trapo. Se alguém conhece só uma única música do Língua, há de ser esta. Uma balada setentista a la Odair José (onde seu lado mais trágico é transformado em cômico), inicia com um lento lick de guitarra, grudento que só, que te ganha já no comecinho. Um órgão anacrônico acompanha tornando a canção ainda mais sublime. Concheta é convidada pelo nosso herói para um banquetão no ristorante do Grupo Sérgio (repare como o tema gastronômico se repete...), mas ele parece ter outras intenções:
e ocê parlô per me: facchiano I'amore lá no meu beliche.
E eu te diche: má logo agora que misturei cocomero com aliche,
ocê vem me falá em amore,em séquiço,
logo agora que eu tô com una bruta dolore no duodeno...
E ocê parlô per me: vá! má me toma um sar de fruta Eno!
O lado A terminaria com esta chave de ouro se não fosse por um detalhezinho que não cabe na era do MP3, sequer do CD. AO final de Conhcheta, quando você se prepara para trocar o disco de lado, entra o coro pedindo:
Vira, vira, vira,
Vira, vira, vira...
Enquanto que o lado B começa com:
Virô!
E só então toca Xingu Disco, a primeira faixa deste lado... Como o próprio nome sugere, esta é uma canção disco, a la Frenéticas (com uma produção bem mais modesta), em que o tema é a aculturação dos povos indígenas. O que tinha obviamente tom de crítica na época, hoje pode passar até por elogio ao processo.
A minha irmã foi trabalhar na Zona
Franca de Manaus, no comércio de japona
Peri, meu mano, é campeão de fliperama
Meu pai é revendedor dos produtos da Brahma
E se não fosse o milagre brasileiro
Os meus parentes inda eram seringueiros
E eu não seria presidente da Brazil
United Corporation Bauxita and Steel
O Que é Isso Companheiro? toma emprestado o título do livro do Gabeira e conta a história de dois camaradas que foram confundidos com terroristas quando tentavam assaltar um banco. A levada é de música caipira de raiz, com viola e acordeão. Vampiro S.A. é mais uma ode panfletária ao socialismo, comparando o empresário a um vampiro sanguessuga. A levada é de um heavy metal lento a la Black Sabbath com destaque para as guitarras (ainda que a produção tenha deixado a música bem mais leve do que é costumeiro ouvir no metal pesado...). A introdução é feita num piano distorcido acompanhado de efeitos (que lembra 2000 Light Years from Home dos Stones) que deixa o clima ainda mais sombrio para acompanhar a letra:
Monstro asqueroso de horrenda feição
Sou um cadáver em decomposição
Me ergo da tumba já putrefato
Mais tenebroso do que o Nosferato
Romance em Angra é um bolero ecológico onde um casal, literalmente desfeito e deformado, lembra seus áureos tempos antes do acidente na usina nuclear. E o disco termina (musicalmente falando) com Quem Ama Não Mata, música censurada na época e que na versão que eu tenho em LP é completamente instrumental (os vocais foram suprimidos). Este tango conta uma história de amor e adultério, e o protagonista recorre à mamãe, golpe baixo, pra falar mal da sua mulher:
Mamãe, mamãe, venha ver a sua nora
Ela sempre me ignora depois grita o dia inteiro
Só pra me deixar cabreiro:
- Eu vou dar pro tintureiro, eu vou dar para o leiteiro, eu vou dar para o padeiro
Sua nora eu afoguei lá no bidê
Agora ela fica resmungando
E, às vezes borbulhando inda ouço ela dizer:
- Eu vou dar pro encanador (glub! glub!)... Eu vou dar pro encanador (glub! glub!)
Depois de uma rápida pesquisa de opinião pública sobre o conjunto Língua de Trapo, o disco termina com uma voz incompreensível recitando alguma coisa em russo, búlgaro ou algum dialeto eslavo perdido. Bem, pelo menos esta é a impressão, porque se você desligar a “vitrola” (que é um aparelho que toca discos de vinil) e rodar (manualmente!) o disco ao contrário, a mensagem codificada se esclarece:
Você está estragando a sua vitrola, você está estragando a sua vitrola!...
É. Existem coisas que não dá pra escutar em CD, muito menos em MP3. [MATEUS]
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