sábado, 15 de dezembro de 2012

Moacir Santos - Ouro Negro


Um dos maiores da música popular brasileira.
Um dos maiores desconhecidos da música popular brasileira.

Um dos Músicos dos Músicos.

"A benção Maestro Moacir Santos que não és um só, mas tantos, tantos como o meu Brasil de todos os santos, inclusive meu São Sebastião" ('Samba da Benção', Vinícius de Moraes)

Um exemplo do improvável: "transformar um negrinho do interior de Pernambuco, nascido menos de quatro décadas após a abolição da escravatura e órfão aos 3 anos de idade, em um dos músicos brasileiros mais reconhecidos, nacional e internacionalmente, em todos os tempos" (trecho retirado, como vários outros desta resenha, do encarte do cd e do Songbook).

"Tom Jobim dizia que, no Brasil, é proibido ao aborígene sair da taba. Moacir Santos foi um dos que saíram e o Brasil fez desabar sobre seu nome um manto de silêncio. Pois chega de silêncio. Nanã sabe das Coisas e diz que chegou a hora de o Brasil saber de Moacir, reaprender Moacir, merecer Moacir" (Ruy Castro)

Veio do interior para Recife, depois João Pessoa, Rio de Janeiro, Los Angeles, mundo. Você não conhece? Nunca ouviu falar? Envergonhe-se.

"Moacir foi Maestro, por concurso, da Rádio Nacional. Todos os músicos profissionais, naquela época, iam estudar música 'superior' com ele. Era um professor sensacional, meio metafísico, explicava a harmonia, os intervalos entre as notas, as dissonâncias, usando como exemplo as estrelas. Fui estudar com ele essas 'sabedorias', ficamos muito amigos e por causa dessa amizade ele começou a me mostrar as composições que fazia no piano e não mostrava a ninguém. Tocava para mim as músicas e dizia: - Olha essa 'coisa' que eu fiz, escuta essa outra 'coisa'." (Baden Powell)

A palavra 'Coisa' é muito usada pelo Maestro, arranjador, compositor e saxofonista Moacir José dos Santos. Nascido em Flores do Pajeú (na verdade ali foi registrado, o local de nascimento deu-se em local incerto do interior de Pernambuco, entre Serra Talhada, Bom Nome e Belmonte), em julho de 1926 (mesmo ano de Miles Davis e John Coltrane). Entregue a uma família branca 'remediada', teve instrução ginasial e musical, para sorte nossa. Aos 14 anos, dominando vários instrumentos de banda, além de banjo, violão e bandolim, fugiu: Serrânia, Arco Verde, Recife, Catro, Timabúba, João Pessoa, onde se torna sargento-músico da PM, depois integrando a legendária orquestra de Severino Araújo, de mudança para o Rio, onde chega casado com Cleonice.

"Sempre tive o anseio em produzir músicas com a catalogação erudita, como por exemplo Opus 3, Nº 1. Quando Baden Powell foi estudar comigo e me convidou para participar do disco com o baterista americano Jimmy Pratt, na antiga Phillips, o engenheiro de gravação perguntou o nome da música e eu respondi: 'Isso é uma coisa'...Aí me ocorreu a ideia de numerá-las." (Moacir Santos)

Ingressando na Rádio Nacional, RJ, como saxofonista, frequenta bailes também. Mas ao contrário de muitos de seus colegas, estudou sempre e muito, formando-se em Regência e tendo como mestres Cláudio Santoro, Guerra-Peixe, H. J. Koellreuter, de quem mais tarde seria assistente, e Ernst Kreneck, com quem aprende as manhas do dodecafonismo.

"A África não deixa em paz o negro, de qualquer país que seja, qualquer que seja o lugar de onde venha ou para onde vá." (Jacques-Stephen Alexis, poeta haitiano)

Começa algum reconhecimento depois de promovido a arranjador e regente na Rádio, ao lado de Radamés Gnatalli, Leo Perachi e Lirio Panicalli, sendo eleito pelos colegas da Rádio 'o músico do ano'.

Teve muitos alunos conhecidos e reconhecidos na música popular brasileira: Paulo Moura, Sérgio Mendes, João Donato, Raul de Souza, Doum Romão, Bola Sete, Roberto Menescal, Geraldo Vespar, Chiquito Braga, Nara Leão, Dori Caymmi etc, o que o incluiu como um dos patronos da bossa nova.

Paralelamente, o maestro trabalhou com muitas e importantes trilhas para o Cinema Novo brasileiro, entre eles os filmes 'Seara vermelha', 'Ganga Zumba', 'Os fuzis', 'O beijo' e o mais importante, 'Amor no Pacífico (Love in the Pacific)', que lhe trouxe a oportunidade de trabalhar com uma orquestra de 65 excelentes músicos e lhe abriu o mercado internacional, levando-o a se mudar para os EUA, em 1967. Lá, gravou discos solos, um deles indicado ao Grammy, deu aulas e compôs trilhas para cinema (tendo trabalhado até na equipe de Henry Mancini), construindo uma sólida reputação como compositor, arranjador e docente, membro que era da Associação de Professores de Música da Califórnia.

Repito aqui o que já foi merecidamente reconhecido por grande parte da melhor crítica musical: Moacir Santos produziu, nas décadas de 60 e 70, a música popular mais sofisticada e ao mesmo tempo mais enraizada nas tradições afro-brasileiras.

À época do lançamento desse disco, uma coisa que se repetia muito era que a única crítica que o disco merecia era relativa ao título que, por ter sido patrocinado pela Petrobras, poderia remeter ao petróleo e não ao Maestro...

Esse é um disco irretocável, mesmo sendo duplo. As músicas foram recriadas em cima dos arranjos originais, que haviam se perdido quando o selo Forma foi vendida à PolyGram (na época Philips e hoje Universal...), de vários discos: Coisas (Forma, 1965, este que já foi o disco mais valorizado no mercado dos vinis), Maestro (Blue Note, 1972), Saudade (Blue Note, 1974) e Carnival of Spirits (Blue Note, 1975).

Juntamente ou posteriormente (não tenho certeza) foram lançados o Songbook (que eu tenho mas pratico e leio pouco) e um DVD (que encontrei agora no site Livraria da Folha).

Muitos excelentes músicos participam do disco, entre eles Mario Adnet (que também o produziu junto com Zé Nogueira), Ricardo Silveira, Cristóvão Bastos, Marcos Nimrichter, Jorge Helder, Nailos Proveta, Teco Cardoso, Hugo Pilger, Jessé Sadoc, Marcelo Martins etc.

Algumas das músicas receberam letras (por Nei Lopes) e cantores: Coisa nº 8, Navegação (com Milton Nascimento), Sou eu (com Djavan), Orfeu (com Ed Motta), Maracatu, Nação do amor (com Gilberto Gil), Oduduá (com João Bosco), De repente estou feliz (com Joyce e João Donato) e Bodas de prata dourada (com Sheila Smith e Muíza Adnet).
A título de curiosidade, 'Coisa nº 6' tornou-se 'Dia de festa' com letra do Geraldo Vandré, gravada pelo próprio; aqui neste disco está a versão instrumental.

Comentar cada faixa seria uma tarefa muito além da minha capacidade de traduzir esta Música em palavras, além de ficar chato por todos os detalhes musicais, então dessa vez vou transcrever os comentários do próprio Maestro diretamente do encarte.

CD 1:

'Coisa nº 5 - Nanã': "Fico muito feliz de vocês terem gravado a versão original porque foi assim que ouvi e assim que fiz. É uma grande procissão."

'Suk-cha': "Foi uma rosa que ofereci à minha primeira nora que era coreana..."

'Coisa nº 6': "Essa música é uma festa..."

'Coisa nº 8 - Navegação': "A inspiração vem de uma música de Luiz Gonzaga, 'Vem morena' e um tema de filme americano, estrelado por Kirk Douglas, que tinha semelhança com a de Gonzaga. Apenas três notinhas foram suficientes para que construísse o meu tema. Se essas notas me impressionam é o bastante..."

'Amphibious': "Estava viajando de João Pessoa para Recife, era maestro da Rádio Tabajara da Paraíba. Assis tocava trompete na orquestra e tínhamos muita afinidade. Ele me mostrou a primeira parte do tema, que já havíamos batizado de Amphibious e em seguida, fiz a segunda..."

'Mãe Iracema': "É a história de José de Alencar, das duas tribos que estavam em guerra. Iracema flechou um índio rival, no olho, e ele não reagiu quando viu que se tratava de uma mulher. Ela correu para prestar socorro e então isso resultou em um grande amor entre os dois. Quando nasceu o filho ela pronunciou o nome Moacy que, em tupi-guarani, significa 'Oh, filho da minha dor'. Essa música é dedicada a todas as Iracemas..."

'Coisa nº 1': "Foi apenas um truque rítmico, um drible de Moacir Santos..."

'Sou eu [Luanne]': "Esse nome, Luanne, surgiu exatamente onde ele é cantado na melodia. Isso é coisa dos anjos..."

'Bluishmen': "Bluishmen são os negros que, de tão retintos, chegam a ser azulados. Esses são de uma tribo africana que fica na costa, na mesma direção do Ceará. Deve ter sido o mesmo lugar, na época que os continentes eram uma coisa só. A paisagem é a mesma, praias, coqueiros, palmeiras..."

'Kathy': "Foi feita a pedidos para a namorada do Rick, tropetista que tocava na minha orquestra nos Estados Unidos. Apesar do nome ter cinco letras, o fato da música ser em 5/4 é pura coincidência. Coisa dos anjos..."

'Kamba': "Essa foi composta logo que chegamos ao Rio, em homenagem ao nascimento do nosso filho. Cleonice estava na maternidade Clara Basbaum, em Botafogo, e quando liguei para saber notícias, ele havia acabado de nascer. Comecei a cantar esa música no trem, a caminho do hospital. Nessa época, morávamos ao lado de um terreiro, ouvia frequentemente cantos de umbanda, mesmo que não quisesse..."

'Coisa nº 9': "Isso é um lamento.''

'Orfeu [Quiet Carnival]': "Estava dando uma aula numa escola dos Estados Unidos, chamada Nova Music, quando terminei fui para casa e ouvi no rádio uma música que estava no hit parade das 10 mais, uma coisa muito repetitiva. Dessas eu faço uma dúzia na hora! Comecei a compor uma música cheia de repetições, mudando as notas no final de cada frase. Isso fez tanto sucesso entre os músicos, que diziam que ganharia o Grammy..."

'Amalgamation': "Estava começando um curso de música para cinema na USLA, no início dos anos 70 e comecei ese tema naquela época. Adoro quebrar formas tradicionais usando solos ad libtum antes de apresentar o tema. Essa música foi concluída há uns dois anos."

CD 2:

'Coisa nº 7 [Evocative]': "Uma brincadeira pianística..."

'Coisa nº 2': "Antes de ir para São Paulo dirigir a orquestra da TV Record, participei de um curso de música internacional, em Teresópolis. Lá aconteceu um fato simples mas que me impressionou. N passagem entre uma aula e outra, uma moça deixou cair uns desenhos no chão e eu a ajudei a pegar. Ela estudava artes plásticas; começou então a me mostrar seus trabalhos e um deles era a pintura de uma rosa. Ela disse: 'Isso é Villa-Lobos' - apontando para a rosa. Mais tarde, em São Paulo, tive uma sensação parecida ao tocar um exercício simples, em Si Bemol, do Método de Czerny. Lembrei da história do quadro 'Villa-Lobos'. A inspiração veio dessa sensação..."

'Lamento astral': "Nós morávamos ainda em Nova Iorque, no final dos anos sessenta. Uma noite Cleonice passou mal, eu a coloquei no chuveiro e saí desesperado pela rua, atrás de uma farmácia. Foi assim que surgiu essa melodia na minha cabeça"

'Maracatu, Nação do Amor': "Antes de gravar o meu primeiro disco nos Estados Unidos, mostrei ao dono da gravadora Blue Note a trilha que havia feito para 'Amor no Pacífico'. Ele gostou, mas pediu que eu gravasse mais músicas ritmadas, nada tão doce como aquela trilha. Voltando para casa, olhei para o céu azul, me lembrei do Brasil e comecei a cantar essa coisa africana..."

'Coisa nº 4': "Foi como imaginei os negros fugindo das senzalas. A melodia, com as notas longas, significa a esperança..."

'Coisa nº 10': "Essa também é um truque musical..."

'Jequié': "Isso é uma inspiração no modo lídio. Coloquei esse nome por causa de uma viagem que fiz à minha terra natal e passei pela cidade de Jequié"
(nota minha: modos são 7, originados da cada nota escala maior, muito utilizados na Idade Média, antes e paralelamente ao sistema de tonalidades, 'primitivo' mas sempre redescoberto e reinventado; o modo Lídio é aquele que você ouve no tema dos Simpsons, por exemplo)

'Oduduá': "Pr uma incrível 'coincidência' os letristas da primeira versão não sabiam da minha história quando escreveram a letra. Só fui descobrir meu nome completo e minha idade exata na década de oitenta, nos registros da Igraja das Flores. Acho que os anjos contaram a eles..."
trecho da letra:
"Diz, Oduduá, quem sou eu?
Pra onde vou? De onde vim?
Quem me fez voar tantos céus
Navegar, tanto assim?"

'Coisa nº 3': "Fui assistir a um filme francês e ouvi, pela primeira vez, o som das ambulâncias de lá. Voltei para casa compondo..."

'Anon': "Anon quer dizer sem nome, vem de anônimo. É inspirada em uma marchinha de carnaval que ouvi quando era criança, em Recife. Não sosseguei enquanto não fiz alguma coisa com ela. A capoeira apareceu no caminho..."

'Quermesse': "Compus esse tema na época da Rádio Nacional. Paulo Tapajóes era meu amigo e prometeu interceder a meu favor para ingressar no quadro dos maestros. Disse a ele que aceitaria desde que não interferisse nos meus estudos com Koellreuter. Escrevi a melodia para trompa e foi o meu tema para o programa 'Quando os maestros se encontram'. Mais tarde, nos Estados Unidos, transformei na festa que acontecia no pátio da Igreja de Flores"

'De repente, estou feliz': "Esta foi para Cléo, completamente"

'Maracatucutê': "Um tema típico de Moacir Santos que, de vez em quando, aparece na minha cabeça..."

'Bodas de prata dourada': "Esta foi composta em homenagem aos nossos quarenta anos de casados. Achei que talvez não chegasse às Bodas de Ouro"
[Moacir e Cleonice estavam casados há 54 anos em 2001, ano de lançamento deste CD]

Moacir faleceu em 2006.

Faça um favor a si mesmo, ouça!

Links:
Wikipedia
Tese de pós na UESC

(Dão)

2 comentários: