quinta-feira, 30 de outubro de 2008

LENINE IN CITÉ (parte I) - 2004


Lenine está realmente incitado neste disco. Incitado a dizer o que pensa e sente a toda a voz, descarregando toda sua energia em acordes, ritmos e melodias pra lá de inspirados. Gravado durante uma curta estadia de apenas dois dias no cité de la musique em Paris, durante a primavera e 2004, Lenine reuniu um power trio distinto para conduzir este show. A cantora e violonista cubana Yusa assumiu o baixo fretless de cinco cordas enquanto que a percussão ficou por conta do argentino “baiano aussi” Ramiro Mussotto. O formato (que consagrou entre outros, Hendrix e seu Experience, Clapton e o Cream) apesar de não ser muito usual quando se fala de MPB, se revela ideal ao longo do show, onde o trio exibe um entrosamento de veteranos. Nesta formação, ao vivo, o som fica mais cru, despido de efeitos típicos de estúdio (nada contra...) e assim a ênfase é mais nas canções. O que no caso de Lenine, convenhamos, é uma grande vantagem (eu lembro que comparei a formação de power trio com os deuses da guitarra dos anos 60, onde, apesar das ótimas canções do Cream e de Jimi, muitas vezes a ênfase era deslocada para o virtuosismo dos músicos, principalmente ao vivo). Aqui ele apresenta uma seleção de ótimas canções inéditas mescladas com alguns sucessos e releituras de discos anteriores.

Gostaria muito de escrever sobre as músicas como os posts de Infernal, Condom Black, Ao Vivo em Estúdio, Por Onde Andará Stephen Fry?...., de “dentro pra fora” e não ao contrário, mas acho que não consigo! O disco começa com uma sonoridade diferente daquela que era (então) típica em Lenine, com Do It, que é calçada num poderoso riff que Lenine leva no violão e, de cara, o power trio mostra o cartão de visitas. A letra desta música é um caso à parte:

Ta cansada? Senta
Se acredita, tenta
Se tá frio esquenta
Se tá fora entra
Se pediu agüenta...


Pode, à primeira vista, ser creditada a uma discussão de casal onde ele contra-ataca as reclamações dela, mas, ao longo da música (que não tem refrão, sendo somente uma sucessão de versos do tipo destes na primeira estrofe) esta impressão transcende a queixa em direção a todos os que costumam se queixar e apenas se queixar como se estas fossem suficientes para a resolução de seus problemas, numa atitude típica da classe média. E a advertência é clara: se foi falta, apite! Lenine começa incitado.

Segue o disco com Vivo, uma balada Leniniana com uma letra lindíssima e melancólica, (se) apresentando (com)o ser humano precário, provisório, perecível... Uma suposta redenção vem no final: E apesar... o que mais vale a pena é estar vivo. Lenine volta com toda a força, inspiração, energia e transpiração em Ninguém Faz Idéia, a melhor música do disco na opinião deste que escreve. Aliás, minha música favorita de todo o repertório deste bolchevique dos trópicos.... Como Do It, esta música é parceria de Lenine com Ivan Santos, que caprichou aqui. Mais uma canção sem refrão (o que a torna menos pop e mais difícil) onde o desfile de malucos e donas de casa, putas, babalorixás, de encanados, divertidos, a vanguarda e quem fica pra trás dá um colorido especial à canção que se baseia num ritmo contagiante levado pelo trio que, aqui sim, descobre um caminho mais alternativo para o formato se afastando da melodia e harmonização típica do blues-rock. E o recado completa a descrição do “vivo” dada na canção anterior: “ninguém faz idéia de quem vem lá”. Mas esse post já se prolonga e estou apenas na terceira música, vamos em frente!

A alternância entre baladas e pegadas tem seqüência com Todos os Caminhos, que sugere deixar uma brecha para surpresas e improvisos que complementam com graça nossos projetos de vida... A primeira das releituras deste disco, nunca foi tão atual: Rosebud (ou o Verbo e a Verba), música tirada de Falange Canibal (de 2002) antecipava então o crack das bolsas de 2008:

O verbo gastou saliva de tanto falar para o nada,
a verba era fria e calada.
O verbo não soube explicar depois,
porque foi que a verba sumiu.

E o (mini-)refrão coloca precisamente: Dolores?! Dólares... Onde as interrogações e exclamações vão por minha conta e podem ser lidos perfeitamente de outras formas. O samba “Virou Areia” poderia ser apenas uma canção ecológica, mas vai além disso perguntando:

Cadê a voz que encantava a multidão?
Cadê o passado, o presente a paixão?
Cadê a muralha do imperador?
Virou...
... areia


(E curiosamente esta canção vem na seqüência de Rosebud, o que coincidentemente lembra que a verba também virou areia, e que o verbo deve ir pelo mesmo caminho). Areia que simboliza a ausência de vida e que escapa suavemente pelos dedos....

[continua no próximo post... MATEUS]

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