domingo, 23 de novembro de 2008

Ao Vivo na USP – Gilberto Gil (1973)



Dessa vez vou falar de um disco que não foi lançado, mas descoberto. Trinta anos depois, foi encontrada uma fita com um show que Gil fez na Poli-USP em 1973 em protesto contra o assassinato dos estudantes Honestino Guimarães, à época presidente da UNE, e Alexandre Vanucchi Leme, pelo governo militar. Reza a lenda que o show, programado para meia hora de voz e violão, acabou durando três e foi repleto de estórias de Gil, bate-papos, interação com o público, num clima de intimidade que foi perfeitamente captado pela gravação.

As estórias são um ponto alto do show. Exemplo: o público pede Cálice, música dele e de Chico, prevista para ser tocada no Festival Phono 73, mas que na hora H o som foi desligado, para a irritação dos dois. Ele não só conta essa estória, como explica que como cada um iria cantar sua parte na apresentação, ele acabou não decorando a parte de Chico. Finalmente alguém da platéia escreve a letra em um papel para ele cantar. Terminada, ele pede pra ficar com o papel, pois não tinha a letra. Claramente viajandão, ele está no melhor da sua verve, da sua retórica gilbertiana (que nem nesse vídeo aqui http://www.youtube.com/watch?v=LfYM3iFG8qU).

Essas estórias saborosíssimas por si só já justificariam a citação desse disco, mas acima de tudo isso, há a música. Muito à vontade entre os estudantes, num show sem roteiro, como não se vê mais, ele vai desfilando canções próprias (Procissão, Expresso 2222, Back in Bahia) e do repertório de artistas que gosta, como Germano Matias (Senhor Delegado), Gordurinha e Almira Castilho (Chiclete com Banana), Dominguinhos (Eu só Quero um Xodó), João Gilberto (que lhe ajudou a entender Eu quero um samba), Clementina de Jesus (de quem ele evoca o espírito em O Sonho Acabou) e mostra consciência da importância e da qualidade da própria obra (“Não vai nenhuma vaidade, eu tô falando de fora de mim, agora. Eu gosto de Domingo no Parque, acho uma música belíssima. Se não fosse minha eu admiraria mais ainda”, fala aos risos, dele e de todos).

Gil dispensa justificativas, mas nesse caso vale um comentário. Caetano tem uma tese que a linha evolutiva da música popular brasileira se deu por meio de artistas que usavam o violão como instrumento preferencial de sua arte: Caymmi, João Gilberto, Jorge Ben e Gilberto Gil. E aqui a gente tem a oportunidade de ouvir o violão de Gil por inteiro, despido e, nesse caso, numa versão às avessas do rei nu, não há vestimenta mais rica. Ele passeia por sambas tradicionais, novos, xote, rock, bossa, afoxé, num largo leque de influências e interesses, todos transformados por sua forma personalíssima de tocar. Mostra em seu violão, na prática, a tese de Caetano. E depois de escutá-lo tocando, fica difícil não concordar com ela.

Luiz Marcelo

sábado, 22 de novembro de 2008

Por Pouco - Mundo Livre S/A (2000)


Como dizia Otto, Fred Zero Quatro é a mistura de Jorge Ben com The Clash. Difícil pensar numa combinação como essa, mas isso só se você ainda não ouviu Por Pouco. A variedade de ritmos (rock, reggae, rockabilly) e o discurso politizado do Clash estão presentes. O samba, bossa, samba rock, suíngue, lirismo, safadeza de Jorge Ben, também. A eles coloque-se uma pitada de Tom Zé e, pensando bem, não poderia haver melhor definição para este disco.


E uma palavra que une as três facetas é ironia. Tapa na cara, mas sem luva de pelica, nos melhores momentos, o disco serve de espelho da mediocridade da vida urbana brasileira do início do novo milênio, inútil, manipulada, que vem e vai no trânsito, no Jornal Nacional, no consumismo, no sonho da casa própria e na gostosa que sonhamos inutilmente um dia comer. Essa desilusão ganha um desenho extremamente sarcástico em Por Pouco, herdeira direta de Inútil, do Ultraje a Rigor, anti-hino da derrota das Diretas Já nos 80. Ela é um retrato do Brasil, o país das intenções nunca realizadas, da bola na trave, o país do futuro só que o ano 2000 chegou e a gente estava na mesma.


“Estamos quase sempre otimistas
Tudo vai dar quase certo
Pois o ano esta quase acabando
Depois de termos quase certeza
Que dento em breve teremos um quase alegre carnaval
Por pouco não trouxemos o penta
Quase acertamos na loto
Quase compramos a casa
Quase ganhamos o carro
A moça da banheira ficou quase nua
A gostosa da praia quase dá, não dá.

Desilusão que já está presente desde a primeira música. Com jeito de manifesto, o Mistério do Samba é imperativo em sua desconstrução de tudo o que o samba não é:

“O samba não é carioca

O samba não é baiano

O samba nao é do terreiro

O samba não é africano”

E por aí vai, como se dissesse, o samba é livre, “não tem mistério”, terminando na conclusão perfeita: “E como reza toda tradição, é tudo uma grande invenção”.


Nesse clima de desilusão, o disco encontra um espaço para o amor, em momentos carinhosos e safados. Que nem Mexe Mexe, composta por Jorge Ben, ele mesmo, que é Jorgebeniana até o último fio de cabelo, sem o menor pudor. Começa com uma levadinha no violão, boa de dançar, devagar, difícil não mexer pelo menos a perna embaixo da mesa. Na sequência vem o Melô das Musas, com um elogio explícito a Wânia, a mulher "com um dábliu maiúsculo, um dábliu formidável, bem maior que minha testa", gostosíssima, saindo do mar e “eu não vou sair daqui sem ver ela sair da água”.


Daí o ritmo acelera forte pra Treme-treme, versão de Shackin’ all over, que vira “se tremendo toda”, rock com clima Clashiano, nervoso. “O seu olhar me comanda e manda eu me mexer. E a tremedeira é rebatida pra você”. É nervosa também na ansiedade dele pela conquista e daí a tremedeira passa pra ela, vira um orgasmo.


E depois da transa, do sexo forte, vem aquela relaxada na cama. Meu Esquema, uma bossa suingada, sopros suaves, a declaração de amor mais masculina que conheço: “ela é meu treino de futebol, ela é meu domingão de sol, concerto de rock and roll, torcida gritando gol, playcenter, pista alucinada, inferninho, esporte radical, poderosa viciante, mas não faz mal, o que meu médico receitou, Rivaldo maravilha mandando um gol, minha chapação”. Lendo assim, parece ridículamente machista, mas Fred Zero Quatro dá a ela uma convicção que muda completamente a maneira como a gente entende cada palavra.


Mas esse é um lado do disco. O outro é o do discurso politizado que apesar de às vezes beirar o panfleto, tem também sacadas excelentes. É metralhadora giratória, e sobra pra todo lado: a violência urbana (“Algo me alvejou, ai, olha o sangueiro irm ão, segura que eu vou cair”, no samba Tomzeniano Super Homem Plus); a sociedade de consumo e o mercado (“O mercado vive em guerra... Não há lugar pra escrúpulos... Cedo ou tarde você vai se entregar ao mundo livre, não adianta, não há como escapar”, de Concorra a um Carro); os Estados Unidos em Lourinha Americana; as mega corporações, a Nike, o Congresso, os governos, os partidos e políticos em Batedores.


Dentro desta perspectiva, Por Pouco é o Cabeça Dinossauro dos anos 90. Retratos do país, cada um em seu tempo mostra quem éramos. O Cabeça, mais explícito em sua crítica às instituições, era raivosamente adolescente, portanto mais inocente, como a democracia, que engatinhava. Por Pouco faz o mesmo, mas com um cinismo de quem está ficando adulto, perdendo as ilusões. Pois é claro que nós crescemos, superamos a ressaca do impeachment, ganhamos a guerra contra a inflação, saímos da faculdade e agora precisamos conseguir um emprego, comprar uma casa e constituir família (lembram do início de Trainspotting?). Se sobrar tempo, quem sabe você não continua indo em busca de seus sonhos? Só que a essa altura você já começou a perceber que aquele futuro brilhante que sua mãe e sua avó tinham certeza que te esperava talvez esteja um pouco mais distante do que você pensava ("Droga, foi por pouco!").


Não é fácil olhar pro nosso lado ruim. O Mundo Livre S/A teve a coragem de fazer isso, olhou o país, mastigou, regurgitou e vomitou Por Pouco em nossa cara. A gente pode até não gostar, mas vai ser difícil não se reconhecer nele. E ainda mais interessante é que apesar de toda a desilusão, o disco termina otimista, com as versões para Minha Galera, de Manu Chao, e de Garota de Ipanema, que exaltam coisas simples, como os amigos, a namorada, a praia. E nisso ele não consegue fugir de ser, ele mesmo, um espelho da contradição brasileira, sempre lidando com problemas que não consegue resolver, sonhando com coisas que não consegue ter, mas sempre otimista, exalando sensualidade e sempre disposto a curtir a vida.


Luiz Marcelo

Minas - Milton Nascimento (1975)

Tarefa difícil elogiar um disco de Milton. Não por falta de talento, que acho indiscutível. Grande voz, sempre bem acompanhado, repertório com diversos clássicos, e por aí vai. O problema é que ele ficou chato, virou uma mala sem alça. Obviamente que falo do artista, pois a pessoa é tão doce e tranquila que acho que qualquer um gostaria de bater um papo, trocar uma idéia. Ele, portanto, está longe de ser um Ivan Lins, porque aí também não dá, o cara é quase imbatível, sendo que eu tô dando o benefício da dúvida, porque não conheço ninguém mais chato.

Mas voltando a Milton, depois que ele virou menestrel, cantou pra Tancredo, aquela super exposição, as músicas, sei lá, perdi a paciência e aí acabei esquecendo que o cara teve uma produção excelente antes disso. E por isso, não foi sem surpresa quando fui apresentado a este disco.

Minha reação inicial foi de desconfiança natural, “O mala do Milton?”, mas o disco já começa conquistando de cara com Paula e Bebeto, música incidental que abre e fecha Minas. Linda, com coro de amigos, coral de meninos, vocalizes de Milton, que acompanha tudo com o violão. E mais nenhum instrumento. Bonito demais! Curioso é que Paula e Bebeto, além de seu momento solo, também faz participação especial/incidental em Idolatrada e Saudade dos Aviões da Panair.

Saudade que é palavra chave no disco (e talvez em toda a arte de Milton), porque o disco não é sobre Minas Gerais, mas sobre a Minas de Milton, desde a sua infância no interior à BH do Clube da Esquina, dos Beatles, dos amigos, que em cada música é evocada em imagens, símbolos e lembranças levemente melancólicas, saudosistas, com um quê de triste. Que nem em Ponta de Areia, mais um hino ao passado, lembranças de um lugar e um tempo que não existem mais.

E referências, há várias, como a música sacra, trazida pelo coral, e que fez parte da infância de Milton e mesmo de sua formação como cantor; ao barulho de trem, em Gran Circo; além de vocalizes de Beto Guedes, seu velho parceiro e amigo, que também divide os vocais em Fé Cega, Faca Amolada. E há outros, como costumava ser entre eles: Wagner Tiso em vários teclados e na produção, Nivaldo Ornellas nos sopros, Toninho Horta na guitarra (em excelente forma, às vezes límpida, às vezes torta), todos eles artistas com produção individual respeitada, mas com a humildade de saber ser coadjuvante, ainda mais num disco que preza a simplicidade nos arranjos.

Arranjos que são um dos destaques do disco. Simples, mas sofisticados, essa mistura difícil é típica dos discos de Milton, que conseguiu grandes resultados nos anos 70. Isso fica claro em Norwegian Wood, dos Beatles, que ganha uma versão com belos vocais, divididos com Beto Guedes, uma banda, com guitarra, baixo, bateria e teclados, além de uma orquestra que consegue dar um ar dramático sem cair na suntuosidade. Desde o início percebe-se que é uma música familiar, mas demora até cair a ficha, mérito do trabalho de recriação de um clássico.

Milton produziu grandes discos e este sem dúvida é um deles. Daqueles que, mesmo quem, como eu, não é fã, gostam. Daqueles que são bons, mesmo transbordando todos aqueles clichês de Minas, da vaquinha, o morrinho, o riozinho, o trenzinho. É prova de que não se deve ter preconceitos na arte, para não corrermos o risco de perder belos momentos como os deste disco.

Luiz Marcelo

Jesus não tem dentes no País dos Banguelas Titãs (1987)


“JESUS NÃO TEM DENTES NO PAÍS DOS BANGUELAS ” é o nó do amor, da violência e do desejo. Esse cd é aquela hora que a gente volta à superfície depois de um mergulho profundo. É aquela primeira respirada, aquele momento em que a gente saca que tá vivo. E os Titãs com a sua poesia escura nos transportam para uma caixa preta e úmida, cheia de fumaça e com o eco que atordoa. Algo bastante perturbador.
É isso: a letra perturba, o som é de fliperama e quando a gente se dá conta, já fomos consumidos pela onda.

Jesus não tem dentes no país dos banguelas - Jesus é qualquer um, e mais: ele é mais um no emaranhado do nó. O título já sugere que quando se fala de jogos de sedução e violência, não há espaço para diferença e que agora vale tudo.

“Todo Mundo quer Amor de Verdade” começa com um som travado, desencontrado, quase desesperado. O amor é tratado como uma necessidade vital e diária, como um produto que devia ser grátis nas prateleiras. Os Titãs arrancam o amor da caixa cor-de-rosa e põe na caixa preta, aonde ninguém se vê e todo mundo se lambuza: o medroso, o faminto.
Ele quer, Ela quer.

E o som quase redondo-quase-quadrado da guitarra traz a “Comida”. Estamos na caixa preta, hipnotizados pelos sons, insaciáveis. A gente tem fome de algo mais, de tudo ao mesmo tempo agora. A gente tem fome da gente, do outro e do desejo… E se a gente não encara o desejo, ele se transforma numa força avassaladora e nos faz inimigos de nós mesmos. E num jogo sonoro os Titãs gemem e emendam, sem quase a gente perceber as duas músicas –“Comida” e “Inimigo”.
A gente já não sabe mais quem é o inimigo – só escutamos o eco e num vai e vem do desejo a gente cai na armadilha: às vezes você tem razão, às vezes não.

E o som vai ganhando poder. A violência chega grande, veloz, ferina, falando alto, dona do pedaço. "Corações e Mentes” estoura com a energia da dissociação.
"Alguma coisa aconteceu/ Inevitável acidente/ Rancor e ódio separaram/ Corações e mentes".
O amor grátis já não é mais tão grátis assim. É um amor com personalidade, dúvidas e ressentimentos. É o amor-cela, onde não se vê nem mar nem céu.
E o som, a histérica bateria do Charles Gavin vai nos envolvendo numa atmosfera de ansiedade, que é impossível não cair de boca na sonzeira, não se transformar num personagem e pulsar com a música.
“Não existe paz/ Não existe perdão/ Eu não suporto mais violência e paixão/ Não aguento mais viver dentro dessa prisão/ Meu amor, minha guerra, eu erro e você erra.”
Sou vidrada nessa música! Acho mesmo que a paixão é violenta, e tem que ser. É algo que tem que te rasgar, tem que botar no inferno, te fazer perder os sentidos. Êxtase
O teu beijo é tão doce/ O teu suor é tão salgado/ O teu beijo é tão molhado/ É tão salgado/ O teu suor.

Em “Diversão” é a diversão pelo avesso. Somos nós topando com o nosso vazio, com o nosso colorido desbotado. O som eletrônico me lembra um ambiente de porão com luz fosca onde a gente se tromba e não se fala. O outro não importa. É o anti-desejo. “Nada disso às vezes diminui/ A dor e a solidão”. É uma música imperativa, da entrega total ao nada: “Diversão é solução sim/ Diversão é solução pra mim”.

“Infelizmente” é um sermão que é quase uma praga. Ela vem pautada, cristalina, cruel. "Infelizmente” é a nossa consciência! É aquela voz que só chega à noite, que passa pelo vão da porta e cochicha no teu ouvido. É a tua verdade. As palavras são ditas devagar pra que você não corra o risco de não entendê-las. O som é pesado, denso.
Um arraso que vai embora sem dar tchau.

Nando é o dono de "Jesus não tem dentes nos país dos Banguelas”. Irado e embalado por um som cheio, ele só é capaz de cantar essa única frase. E a frase volta mais forte, num coro e a música volta mais forte e transborda. E chega o fim. “Jesus não tem dentes no País dos Banguelas” é pra você! Se vire com ela.

“Mentiras” é barulhenta. É que mentira é mesmo barulhenta… Sem mais nenhum comentário.
”Desordem” é um Jornal Nacional cantado. É o olho conservador posto em xeque. É a crítica à banalização da violência. A violência tá aí, mas e aí? “ Quem quer manter a ordem?/ Quem quer criar desordem?”

Não é à toa que depois de “Desordem”, os Titãs piram com “Lugar Nenhum”! Essa música é a gente, é a nossa desordem procurando um norte, querendo uma saída. De onde você é? A gente é um misto de tudo e isso é a grande sacada. “Eu não tô nem aí/ Eu não tô nem aqui”. E a guitarra vai te embalando, vai te fazendo se perder no labirinto dos lugares…
Essa música grita contra você ser aquilo que você naturalmente é. Você tem que se violentar e se transformar em um novo você. Tão implorando a transformação. É muito massa, porque o pedido de transformação nessa música passa pelo rompimento e negação da única certeza que a gente tem - o lugar do nosso nascimento.

Nossa! Esse cd corta como vidro! É tudo muito intenso, rápido. "Jesus não tem dentes do País dos Banguelas” te faz colocar pra fora todos os teus demônios. É quase um exorcismo! E eu gosto tanto…

“Armas pra Lutar” é a música que enterra a bandeira branca de paz no quintal. Chega. Água. É a desilusão, é a falta de tesão e ao mesmo tempo, as guitarras se falam e com elas vem uma gota de esperança para prosseguir.

Adoro a lista de “Nome aos Bois”. Acho genial como uma lista de nomes - de nomes fortes e inesquecíveis – pode ganhar força e vitalidade e tornar-se uma música. Curto também os urros do Nando. Urros de nojo.

E a energia punk termina em paz com “Violência”. E “os irmãos Morávios mandavam matar com cócegas…”
Demais.

[ANDRÉA]

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Grande Soluça! (Abre-te Sésamo. 1980. Raul Seixas)


Já que até o momento ninguém abrilhantou o espaço com algo do Raul, agradeço sinceramente a chance de ser o primeiro a indicar. Aproveito agora a oportunidade.

Neste disco encontramos o céu e o inferno do sujeito.

Como está mais próximo e a entrada é franca, começo pelo fogo da danação. E, realmente, o “Rock das Aranhas” é de doer. É tão ruim que virou um clássico de nossa adolescência e que sempre nos brindou com momentos constrangedores, agora que olho da altura dos quase 40 anos. Um exemplo: Quem não passou o constrangimento de fazer aquela performance embriagada da musica nos Karaokês da vida nos anos 90 é um verdadeiro herói. “Rock das Aranhas” é a mais legitima musica “espalha rodinha”. É certeza de terminar a noite se contentando com um solitário sanduíche num auto-lanche qualquer. De Qualquer forma, sendo Raul, terminávamos sozinhos e orgulhosos de nossa pouca dignidade. Viva “Rock das Aranhas”.

Vamos ao limbo (já que fecharam o purgatório): “aluga-se” é outra que só vergonha, em perspectiva, me trouxe. Música sensacional! Mas sempre evocada como nada convincente ameaça juvenil de calote em bares. A música não merecia este carma.

O Céu: “Minha Viola”. Posso, tranquilamente, indicar esta como a mais simples e bela música de Raul. Viola, sertão, pai, terra, tristeza, consolo e céu. Tá tudo lá. Entendo bem pouco de poesia, mas se alguém me indagar sobre uma sua definição, não pensaria duas vezes: “Minha Viola”.

“Só pra Variar” sofreu, coitada, com uma regravação infeliz do Barão Vermelho. Louvável a lembrança do grupo, mas é certo que só Raul tem a segurança dos que não se levam a sério o suficiente para “ficar banguelo numa boa”. O verdadeiro paraíso em vida está destinado apenas aos que não se levam á sério.

Tem outras boas no disco, mas termino lembrando “Baby”. Só lembrando. Provoco alguém a comentá-la.

Eu estava em um baile na cidade de Arthur Nogueira/SP quando, do palco, o líder do grupo que animava a festa anunciou a morte de Raul Seixas. Nunca vou me esquecer do silêncio que dominou o local por uns 7, 8 segundos. Também nunca vou esquecer que não foi preciso gritar “toca Raul” naquela noite. Após o anúncio a banda sacou um apropriado “Cowboy Fora da Lei” e não parou mais. Só deu Raulzito.

Como de hábito, não “peguei” ninguém naquela noite, mas o sanduíche que faturei num auto-lanche qualquer ficou na memória.

(ZEBA)

Pois é, eu acabei "repostando" o disco do raul que foi brilhantemente comentado pelo Zeba. Com o agravante de que, sim, eu havia lido a resenha - e comentado!, por sinal - eu escrevi achando que se tratava do primeiro post de Raul deste blogue, no maior efeito fosfosol às avessas... Enfim, segue minha impressões sobre o disco, ainda que minha experiência viva sobre ele não tenha sido tão glorificanto quanto esta que você acabou de ler:

Em Abre-te Sésamo de 1980, parece que o profeta Maluco Beleza que nasceu a 10.000 anos atrás abre uma nova porta. Menos existencial e profético do que nos discos que marcaram sua carreira e o lotaram o famoso Baú do Raul, neste disco, ele parece se voltar seu olhar para preocupações mais “mundanas”. Talvez seja reflexo da troca de parceiro, nenhuma coautoria com o Mago Paulo Coelho, o parceiro predominante aqui é Cláudio Roberto, que já o acompanhava desde 1977 em O Dia em que a Terra Parou.


Quem sai ganhando é a sonoridade de banda da turma que gravou este disco, em especial as guitarras de Celso Blues Boy e do parceirão Rick Ferreira que também tocou slide e violão de 12. O resultado é um disco de sonoridade bem gostosa, que alterna o rock’n’raul (taí, uma das poucas contribuições daquele menino que costumava ser tão bom...) com batidas de candomblé, temperos de forró e moda de viola. Raul volta seu estilingue para os destinos do Brasil em Aluga-se, “a solução é alugar o Brasil!” (estamos em 1980 afinal) e matreiramente sugere a falta de sua cobra no rock das aranha, clássico absoluto que foi vítima de censura na época, e mostrando que ele sabia muito bem de que substância o roquenrrou é feito afinal. A belíssima balada Ângela, onde se sobressai o trabalho de slide de Rick Ferreira, e o rockasso Só pra Variar (que foi revisitado pelo Barão Vermelho) completam os maiores destaques de um disco muito gostoso de ouvir. Nesta última, seu vocal malandro e descolado são inigualáveis (foi mal aí Frejat, mas a verdade tem que ser dita).


E o disco que fecha com chave de ouro, cevada e tabaco em A beira do Pantanal, uma valsinha caipira que tem inspiração Neil Youngiana (down by the river... i shot my baby!...), traz na capa um Raul malandro, de blazer branco fazendo pose num entardecer de cartão postal na cidade maravilhosa. Pronto para encarar os anos 80, charrete que perdeu o condutor...


[M]


Mutantes e seus Cometas no País do Baurets (1972)

Quando eu ouvi Dune Buggy pela primeira eu pirei! Tanto que nem sei mais quando nem onde foi que isso aconteceu. Era mais um motivo pra lamentar ter nascido na época errada. A música tem o vocal vigoroso do Arnaldo, gritando e cantando alucinadamente e com a banda que acompanha na mesma toada. A batera está particularmente enlouquecida aqui e a execução de órgão e guitarra estão no mesmo nível. O bugue das dunas, que passa e nem dá pra ver pode ser jingle de comercial de aditivo mas tem cara mesmo é de submarino amarelo: na hora H eu derramei na gasolina um barato que eu nem sei se é STP ou MSLD, meu Dune Buggy liga!


Outra que é de pirar é o Cantor de Mambo. Como o próprio título (mais do que) sugere, a música traz o ritmo latino perfeitamente adaptado ao som mutante (e vice-versa), sem maiores efeitos percussivos, o mambo tá na própria composição, interpretação impecável na voz de Arnaldo e nas guitarras de Sérgio.


Posso perder minha mãe, minha mulher, desde que o eu tenha o rock’n’roll é um hino anárquico, foda-se o AI-5 a anistia o general e o escambau. O meu cigarro apagou, o meu dinheiro acabou, mas eu tenho o rock’n’roll... Beijo Exagerado é uma elegia ao encontro casual, cru, rápido e certeiro. A Hora e a Vez do Cabelo Nascer e faixa que dá nome ao disco são passeios (quase) instrumentais que mostram a banda antenada com o prog-rock e o heavy metal inglês. Em Mutantes e seus... os versos só aparecem no final da música, numa gozação com a atitude do homem diante do bruxo do luxo baixado o capucho...


Essas cinco músicas mostram os Mutantes numa direção distinta dos sons mais orquestrais tropicalistas, dos tempos de colaboração com o maestro Rogério Duprat (algo que já vinha se desenhando sutilmente nos dois discos anteriores), mas ainda tinha espaço para o som que estava nas raízes dos mutantes. Rita Lee canta só em duas faixas, Vida de Cachorro, um divertido hino à liberdade que parece inspirada na história da Dama e o Vagabundo, com um arranjo acústico que lembra Blackbird; e retorna no lado B, quando eles refazem Rua Augusta, sucesso jovem-guarda de Hervé Cordovil, numa versão que não deixa dúvidas sobre como é que a Augusta foi realmente “subida”.


Balada do Louco é a faixa mais célebre e conhecida do disco, certamente dispensa maiores apresentações e comentários, é uma das poucas parcerias entre Arnaldo e Rita sem a presença de Sérgio e marca a presença de um moderno (em 1972) sintetizador que foi usado no refrão: eu juro que é melhor não ser o normal, seu eu posso pensar que deus sou eu...


E nós somos imensamente gratos por toda essa anormalidade... [MATEUS]


Fruto Proibido - Rita Lee & Tutti-Frutti (1975)

Não dá pra economizar: este é O disco de rock’n’roll brasileiro. Não porque não houveram outros discaços de rock brasileiro, aqui neste blogue encontram-se vários deles... Mas o Fruto Proibido da Rita Lee é um marco, é um gol de placa, chapéu na defesa toda, meia lua no goleiro, tudo isso de trás pra frente, por que o arremate final é do meio-campo, lembrando todos os gols que Pelé, charmosamente não fez em 70.


Primeiro que o entrosamento entre Rita e o Tutti-Frutti estava tinindo, depois do ótimo disco de 74 (ver posts anteriores). Segundo, e principalmente porque a seleção de canções deste disco é de rara felicidade e inspiração. Além de uma ou outra parceria com os tuttis e algumas composições só suas, Rita agregou, em três faixas, um novo parceiro, o dupla de Raul Seixas: Paulo Coelho. A banda perdeu a cilibrina Lucinha, mas o Carlini se ocupou muito bem das cordas. Um novo baterista que parece até o animal dos muppets de tanta pancada que soca pra todo lado, em tudo que é tambor foi agregado junto com um tecladista, de tal forma que Rita dedica-se mais a compor e cantar. E valeu a pena...


Ovelha Negra é o super-clássico dos clássicos da Rita Lee, uma adorável balada (supostamente) autobiográfica que mistura folk, rock e pop na medida certa. Carlini repete à exaustão um dos solos de guitarras mais marcantes da música brasileira, ideal para fechar com chave de diamante um disco como este.


O lado A também termina em grande estilo, na parceria mais famosa de Rita e Paulo, Esse tal de Roque Enrow, que retrata o choque de gerações embalado ruidosa e irresistivelmente pelo som do TF acompanhado de um sax a la Bobby Keys.


Outra que ficou célebre foi Agora Só Falta Você, parceria de Rita com Carlini. A música contrapõe o peso da bateria e guitarra de Carlini ao piano meio booggie que ajuda a dar mais leveza à voz de Rita Lee. Dá até pra sentir o quanto a banda se diverte tocando essa aqui...


Luz del Fuego foi trilha de um filme homônimo estrelado por Lucélia Santos (que deve até ter passado em Sala... Especial!). O lick de abertura é a deixa pra Rita Lee desenhar a história desta personagem e começar a flertar com sua face mais “feminista”. Pirataria de Rita e Marcucci é também um rockão-manifesto: quem falou que não pode ser? não, não, não eu não sei por quê... eu posso tudo! Em outra parceria com Paulo Coelho, Rita Lee dá O Toque, rockão poderoso e sem concessões que vai suavizando quando chega no refrão psicodélico: o som das nuvens, a conversa do vento, a voz dos astros, a história do tempo... Aqui a harmonização vocal é fundamental (aliás, ao longo do disco, os vocais de fundo mostram ser outro ponto certo desta produção), e o verso final é uma espécie de celebração-manifesto pela preservação da natureza: o universo segue o rumo que todos nós escolhemos.


Voltando ao lado A, Fruto Proibido é rock’n’roll clássico, numa das passagens mais suaves do disco, onde Carlini toca apenas violão e gaita, e o piano ensandecido são ideais para descrever a relação com as tentações e os frutos proibidos que Rita descreve e assume aqui. Dançar pra não Dançar é a música de abertura, numa sugestão que Caetano assumiu quando cantou deixa eu dançar, pro meu corpo ficar Odara... A música (portanto, o disco) inicia com os compassos executados só no piano, frenético, boggie-wooggie, mostrando que o som deste disco está um pouco diferente, quando o resto da banda entra, mostrando a cara do TF.


Cartão Postal é um blues irresistível, sobre encontros e despedidas, canção estradeira de levada lenta e acústica, piano e violão muito bem sintonizados, acompanhados por uma harmonização vocal impecável e Carlini num slide inspiradíssimo.

Pra que? Sofrer com despedida...

Se só vai, quem chegou...


...Pra que?... sofrer...

[MATEUS]