A carreira de Jorge Ben é repleta de renascimentos. Parece que de tempos em tempos as pessoas enjoam dele e na seqüência uma nova geração o descobre e se torna irremediavelmente fã. E este disco marca justamente o primeiro reencontro com o sucesso. Marca também a transição e renascimento para o que seria o som do Ben nos anos 1970 e que mudaria irremediavelmente a música brasileira. Transição que, ao invés de gerar um disco esvaziado, tateante, nos deixou uma penca de sucessos, arranjos memoráveis e sementes para muita coisa boa que ainda viria.
Um pouco de história, então. Após uma estréia arrebatadora, seus discos foram perdendo a força, a inspiração, ficando irregulares. Mas não foi só culpa dele. No final dos anos 1960 o Brasil estava bem diferente. E estranho. O clima zona sul carioca típico da bossa nova havia dado lugar à ditadura, aquartelada na seca e distante Brasília, e o típico maniqueísmo causado pelos regimes de exceção. Super sucintamente, a música de protesto tomou conta de um lado do ringue, enquanto a apolítica Jovem Guarda disputava com ela a atenção do público, que defendia seus preferidos nos festivais. No meio, o Tropicalismo surgiu misturando os dois lados e deixando muita gente confusa.
Se fosse pra classificar Jorge, que nunca foi muito chegado a política, a princípio seria junto a seus amigos de adolescência, Roberto e Erasmo. Mas não é tão simples, assim. Primeiro porque, embora andasse com uma turma que gostava de rock a onda dele sempre foi mais o samba. Depois porque seu jeito diferente de tocar não se enquadrava nem na bossa nova e nem no próprio samba, o que o levava a ser admirado, mas também criticado pelos puristas de ambos os grupos. Segue que ele também incorporaria cada vez mais influências da música negra americana, principalmente do funk, sem falar na percussão africana. Finalmente, os tropicalistas o adoravam e principalmente após esse disco, gravaram várias de suas músicas. Lógico que essas influências todas tiveram impacto em seu trabalho e esse disco é resultante dessa mistura.
O pé no passado fica claro nos arranjos de José Briamonte. Embora muito influenciados pelo que se fazia nos anos 1960, são inspiradíssimos e por si só já valeriam citar esse como um dos grandes discos já produzidos no Brasil. Dentre os meus preferidos estão os de Criola, Bebete Vãobora, País Tropical e Take it Easy my Brother Charles. Já o tropicalista Rogério Duprat introduz o que havia de novo na época e contribui com o clima psicodélico e bem mais experimental de Barbarella e Eu Descobri que sou um Anjo.
Por essa lista de sucessos já se percebe o quão inspirado estava o compositor Jorge, que parecia estar se dedicando bastante a suas musas. São seis ao todo. Começa com Criola; passa pelo amor possessivo em Domingas; o malandro enciumado em Cadê Teresa? e em “tenho uma Nega chamada Teresa”; a musa do sonhos, Jane Fonda, linda em Barbarella; e termina com Bebete.
Mas também há boa variedade temática. Suas contradições mostram a dificuldade inclusive dele próprio em se aliar a um ou outro grupo. País Tropical é uma celebração ufanista que poderia muito bem ser acusada de propaganda da ditadura. Por outro lado, Charles Anjo 45 é sobre o guerrilheiro Avellino Capitani, que na época vivia na clandestinidade. Além da psicodelia (Eu descobri que sou um anjo) e uma citação sutil ao movimento negro (Take it easy my brother Charles), onde ele faz um pedido que luta por direitos civis siga um caminho de paz.
Quanto ao seu violão, as mudanças na batida eram claras. E num arranjo cru, só percussão e violão, o disco termina lançando as bases para o que seria o samba rock. Gravado com o Trio Mocotó, que seriam parceiros constantes nos anos seguintes, Charles Anjo 45 é um show de simplicidade, força, ritmo e abre mil possibilidades que seriam exploradas por Jorge em seus discos seguintes e que nos dariam uma obra de riqueza poucas vezes igualada.
Finalmente, se não são suficientes todos esses argumentos, deixo alguns que pelo menos para mim são definitivos. Esse disco foi lançado no ano em que nasci e durante meus primeiros 5 anos era um dos preferidos. Uma época em que meus pais tentavam manter a coleção de vinis longe da minha pouca habilidade em manusear a agulha. Esforço inútil, porque eu empurrava uma cadeira para, escondido, alcançar a radiola e, assim, arranhar todos os discos que pude, principalmente meus prediletos, o que foi devidamente registrado numa foto que me flagrou com aquela capa colorida com um Jorge Ben psicodélico na mão. Não bastasse, o disco influenciou uma das minhas primeiras incursões literárias, quando aos 10 anos eu estava em dúvida entre ser cientista, astronauta ou escritor...
“O Anjo – 18.08.80
Nessa época eu deveria ter três anos. Todos os dias eu ouvia um disco de Jorge Ben, em que ele cantava: ‘Eu descobri que sou um anjo’. E toda manhãzinha eu ouvia essa música.
Um dia eu e minha mãe fomos à missa e eu vendo uma estátua, perguntei:
- Mainha, o que é aquilo?
- É um anjo, meu filho.
- Ah, já sei! É Jorge Ben, não é?“
Jorge Ben
1. 03:30 Criola
2. 03:35 Domingas
3. 03:26 Cadê Tereza
4. 03:19 Barbarella
5. 04:16 País tropical
6. 02:36 Take it easy My Brother Charles
7. 04:05 Descobri que sou um anjo
8. 02:38 Bebete vãobora
9. 03:10 Quem foi que roubou a sopeira de porcelana chinesa que a vovó ganhou da baronesa?
10. 03:05 Que pena
11. 04:55 Charles Anjo 45
[Luiz Marcelo]
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Excelente post baiano! Muito bem mesmo, leve e solto, como quem acaba de descobri com é bom dar o rabo!
ResponderExcluirAgora, bem que você poderia caprichar na edição, as letras tã muito miudinhas!...
Prezado leitor, obrigado por sua preferência. Sua opinião é muito importante para nós. Já fi providenciado o aumento no tamanho das letras.
ResponderExcluirGrato,
Luiz Marcelo
muito bem aberto o mês de agosto!
ResponderExcluira capa desse cd é o astral: uma mistura de psicodelismo com aquelas mãos enormes típicas do portinari.
salve jorge!
[ANDRÉA]
Pois é, esqueci de falar sobre a capa, de Albery, que é super conectada com o álbum. Estão lá as musas, Barbarella, uma "autoridade" de terno tentando impedir o amor, a percussão negra, os orixás, o violão, o Flamengo, o país tropical, os pulsos libertos de quem quer ocupar um espaço que lhe cabe, mas com paz e alegria, como mostram a pomba da paz e o sol que inspira o som luminoso do disco.
ResponderExcluirMuito bom, Luma. Adorei o texto. Com direito à contextualização política e tudo. Você terido tido sucesso na carreira literária! Tenho minhas dúvidas quanto a ser astronauta... hehehe
ResponderExcluirEntão você é engraçadinho desde criança?? :D
beijos!