sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Maria Bethania - Pirata (2006)

Entre os quatro baianos tropicalistas mais próximos (isto é, estou excluindo o Tom Zé), Maria Bethânia é sem dúvida a artista mais diferente. Talvez por isso até, seja menos popular que os outros três, e seja tão difícil encontrar um fã ardoroso seu. Eu mesmo, só conheci um. Chamava-se Alexandre e morava na rua 9 nos idos de 1987-88, por aí.


Com direção musical do violonista Jaime Alem, que se encarrega das cordas no disco, Pirata é um disco dedicado às águas, do mar e dos rios. Como de costume, Bethânia intercala poemas e/ou trechos de poemas com canções que evocam estes temas. História pra Sinhozinho de Dorival Caymmi é a primeira canção do disco, seguida por O Tempo e o Rio de Edu Lobo e Capinam. Nas duas a ênfase é na voz e interpretação de Bethânia, com o arranjo mínimo, acompanhada só ao violão. Todo cais é uma saudade de pedra declama a cantora antes de cantar os Argonautas do mano Caetano. Apesar de regravação, a canção é obrigatória devido à temática do disco: Navegar é preciso / Viver não é preciso... Se “preciso“ aqui vem do verbo precisar indicando necessidade ou do substantivo precisão que denotada certeza, talvez já tenha sido até esclarecido pelo autor, mas a dúvida torna a canção ainda mais bela. O arranjo com violão, baixo acústico e bandolim dá um belíssimo ar de fado, de Portugal...


Bethânia declama Perto de muita água tudo é feliz antes de Santo Amaro, samba em homenagem à terra natal. Aqui fica claro o cuidado na produção do disco, essas quatro músicas em seqüência dão um crescente de ritmo, de pique no disco. Depois vem a minha favorita, De Papo pro Ar. Clássico da música caipira (caipira mesmo!) acompanhada na viola por Jaime Alem, conta a vida boa do caipira que vive do rio da caridade alheia e não se incomoda com nada. Ou melhor, quase nada: Quando no terreiro faz noite de luar / E vem a saudade me atormentar / Eu me vingo dela, tocando viola de papo pro ar...


Fui quase injusto acima, pois Sereia de Água Doce é outra das músicas lindíssimas deste disco. Samba de autoria de Vanessa da Mata (Ei! Alguém tem que resenhar o disco Vermelho!?), mostra a sintonia de Bethânia com a novíssima geração de compositores, fazendo uma sutil e muito bem dosada mescla com canções da velha guarda.


Eu que Não Sei Quase Nada do Mar de uma levada meio espanhola também é da nova safra. Passando (bem) longe da minha lista de compositores favoritos, Ana Carolina e Jorge Vercilo assinam esta belíssima canção que parece sob medida para a sensual voz de Bethânia, como exige a letra carregada de erotismo. O arranjo traz um dos raros momentos orquestrais do disco. Segue A Saudade Mata a Gente, outro clássico de João de Barro e Antônio Almeida, desacelerando um pouco o bpm depois das duas anteriores, mais uma vez com arranjo bem suave centrado em violão em voz. De Antônio Almeida, Serenô segue na toada da canção anterior, ma um pouco mais bonita que aquela:

Minha vida, ai, ai ,a / È um barquinho, ai, ai, ai / Navegando sem vela, sem luz

Quem me dera, ai, ai, ai, quem me dera / O farol dos teus olhos azuis...


Segue o samba com batida de candomblé Memória das Águas e depois com Águas de Cachoeira de Jovelina Pérola Negra, samba de terreiro com cavaquinho e acompanhamento de palmas. Jaime Alem agrega várias Cantigas Populares, na faixa que leva o mesmo nome. Ainda que misture melodias distintas nos versos tirados de diferentes cantigas, a música apresenta uma unidade surpreendente. Bethânia declama Antonio Vieira e termina com A Coroa: voz solo, acompanhada no finalzinho por tambores e coral, tudo agregado com se fosse uma só canção.


Onde Eu Nasci Passa Um Rio é outra da safra antiga de Caetano e essa aqui é a interpretação definitiva de uma canção pouco conhecida da obra do baiano. O arranjo, mais uma vez se destaca, só violão, voz e cello, conferindo a esta bela canção o tratamento que ela merece. O verso o rio da minha terra deságua em meu coração é de arrepiar... Francisco, Francisco é uma bela canção em homenagem ao velho Chico, e o disco termina de maneira bastante pessoal com Meu Divino São José.


O encarte é outro destaque, com figuras feitas de bordados...

Tudo isso faz deste, o melhor disco dos quatro baianos desde O Estrangeiro (resenhado aqui) ou até mesmo, desde Velô (que mais dia, menos dia, vai acabar pintando também). Como canta em Memória das Águas:

Amores são águas doces

Paixões são águas salgadas

Queria que a vida fosse essas águas misturadas,


neste Pirata, Bethânia consegue misturar essas águas. [M]


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