sábado, 31 de janeiro de 2009
Amor e Caos - Ana Cañas (2008)
É a primeira vez que acontece de um livro me lembrar um som. Lendo a “História do Olho” de Georges Bataille, muitas vezes a música de “AMOR E CAOS” da Ana Cañas me vinha à cabeça. O curto-circuito deve ter um motivo: acho o som desse cd estridente, um grito, quase uma necessidade. O filtro é poroso, passando quase todas as emoções. Ana Cañas brinca, assim como Simone e seu comparsa, personagens do livro.
Georges Bataille entra no mundo da literatura por sugestão de seu psicanalista: ele, paciente, era perturbado por suas altas fantasias eróticas e, sem saber o que fazer com elas, seu analista sugeriu que as colocasse no papel. Através da escrita, Bataille derivaria suas fantasias para o texto, fator decisivo para o processo de cura. Um livraço para quem gosta de literatura erótica.
Bem, a Ana Cañas parece fazer o mesmo. Sua música é um rasgo no marasmo de suas emoções e, por consequência, entra como uma flecha nas nossas. E isso é o que mais me atrai no seu som meio “jazzy” – essa capacidade que raspa o infantil, ao fazer um som que escuta e traduz seus próprios desejos.
“Mandinga Não” abre com uns sons deliciosos, já te preparando pro que vem! É uma música teimosa, um jogo: “Você diz sim/Mas eu digo não/Você, talvez/ Mas eu volto a dizer não”. É aquela dúvida que nos ronda, eu quero, eu não quero? Ah! Azar ou sorte. Cabo de guerra.
A Ana tem uma voz linda, usa e abusa, está confortável inventando sons. Parece que não tem medo, deixa tudo rolar. É envolvente com sua teia de arranjos e cordas.
“A Ana” é uma música que poderia ser “A Andréa”, “A Duda”, “A Gabi”, “O João”. Tantos versos simples, despretensiosos e verdadeiros. A primeira vez que ouvi me senti completamente identificada com “A Ana é azeda/ Mas é doce quando é doce/ A Ana é azeda/ Mas muito doce quando é doce”.
Ana Cañas abre fogo para o jogo de sedução, mostra o seu verso e reverso, tudo muito bem acompanhado por um violão e uma guitarra, que aparecem discretamente e docemente. Ana Cañas é dona aqui de uma música que poderia ser uma crônica, um rascunho desses que a gente faz na última folha do caderno espiral, sabe? E aí é que está sua graça.
“Vacina na Veia” é o máximo! O som é bonito, estoura como bolhas. A voz é transparente, quase líquida. Um balanço eletrônico na medida.
É uma contra-música: “Se você olhar pra trás e sentir uma saudade/ Não espere, não vacile/ Vá em frente e volte atrás”. É um som certeiro, rápido, que pede ação.
“Aqui não tem otária/ Só a mulher com a guarda em punho”. De novo o som me lembra o livro... A mulher numa posição “esperta”. E a história é assim: “The beauty of the sun/ By and by a cloud/ Takes all away”.
“Para todas as Coisas” é uma música de amor. De amor porque claramente é uma homenagem a “Diariamente” de Marisa Monte, ao Guimarães Rosa, à Clarice Lispector. Eu acho bem legal essas músicas que são feitas por associações livres. Acho a idéia legal, são geralmente letras cruas que trazem a fantasia do artista de querer sair da própria casca de artista.
A música seguinte “?” traz mais uma vez a dúvida. Linda! Uma mistura de dúvidas tão delicadas, tão humanas, tão infantis e ao mesmo tempo repleta de feminilidade.
“Como faz para musicar?/ Como faz pra não machucar?/Como faz para se libertar?”.
A melodia é um arraso... para cada pergunta, para cada como faz, tem um som de um baixo, que funciona como um companheiro, como o som daquela saliva difícil de engolir.
O movimento é super vivo: inicia discreto, quase sombrio e cresce, se ilumina, sugerindo vida. Tudo isso cantado por uma voz suave fazendo na voz dela, a tua.
“Cadê Você” chega rapidinha, me lembrando a Céu. Acho que essa é a minha favorita! É um som que se fosse uma imagem seria um quebra-cabeça, porque vai e volta, no movimento de tentativa e erro. Massa.
A banda tá forte, com um vigor, uma tensão especial. Ana Cañas é clara, pausada, segura a onda bonito e faz um som viajante. A música parece uma fuga, com gestos ágeis e que num ponto parece encontrar seu porto seguro. Que delícia de ouvir...
“Por isso me traga uma flor/ E faça o favor/ De não me irritar/ E conte uma bela história/ Se for confiante, vou acreditar”.
Se eu fosse você, ia correndo ouvir essa música!
“Devolve, moço/ Devolve, moço/ O meu coração pro bolso”. Foi o Dão que me contou da Ana Cañas, falou pra eu ouvir a música dessa paulista de voz bonita. “Devolve Moço” tem uma batida que é uma mistura jazz, dengo e tecno. E vem com o mesmo tom invocado, imperativo, provocador. Mas o jogo taí, o tom é provocador, mas o tema é sedutor. Essa é a novidade desse cd – Ana Cañas está se emancipando e achando o máximo esse processo! Ela vai e volta, brinca e fica brava, mostra as unhas e lambe. Testa as emoções e os limites. Sem fronteiras.
“Super Mulher” com sua anticapa voadora voa na mesma direção, mas com a alegria de trazer a chuva africana de Naná Vasconcelos . “Ela tem uma pantera/ Que arrasta na coleira/ Ela gosta dessa fera/ Porque é grande feiticeira/ E seduz os corações”. “Super Mulher” tem um som vibrante, ela tem aquela transa.
“They’ll stone you when you’re playing your guitar
Yes, but I would not feel so all alone
Everybody must get stoned”
(Rainy Day Women – Bob Dylan)
E Ana Cañas encerra seu disco na alma de Bob Dylan , pra gente nunca esquecer desse passado pulsante que insiste em trançar por nossas pernas.
[ANDRÉA]
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Adoro suas resenhas!!!!
ResponderExcluirEverybody must get stoned!
beijos do Dão