Todo mundo cresceu sob um som. Inevitável experiência familiar… Eu cresci ouvindo Chico Buarque. Aliás, continuo sob alguns signos dos Buarques, quando ao invés do som do Chico, às vezes vem a voz do velho Sérgio... Durante anos Chico Buarque foi a trilha sonora da família e eu gostava muito de tudo isso. Era o mundo que eu tinha.
“O Grande Circo Místico” pintou em casa e eu já estava nos meus 12 para13 anos. De cara achei um disco diferente… Aquela capa azul celeste com aquele cavalo de visual mambembe com pernas humanas carregando um circo era demais! E rapidinho já queria ser a bailarina da música! E sempre quando penso num cd do Chico penso nesse. Adoro a idéia de poder existir um circo que é místico! Adoro e acho tão singular a estória desse cd: ele foi todo inspirado num poema de Jorge de Lima e criado para o Ballet do Teatro Guaíra... É o único cd ilustrado que eu conheço: são músicas que podem ser transformadas numa estória em quadrinhos! É um cd repleto de personagens. Um obra de arte de Chico e Edu Lobo.
As vozes da introdução nos transportam para um templo, o som funciona como ópio – preparando o corpo, dando condições para a mente receber todo o mistério e alegria que um circo místico pode oferecer. E o som explode numa banda, com um bumbo e um prato estridente marcando fielmente cada vígula, com os metais graciosos, com um xilofone esperto e rápido. E o show não para!
A estória começa na voz pacífica de Milton, que lindamente canta Beatriz. Essa música é um formigueiro de emoções. O único companheiro para a voz de Milton é um piano. Não podia ter um companheiro melhor. Beatriz é a atriz. Beatriz atriz. “Sim, me leva para sempre, Beatriz/ Me ensina a não andar com os pés no chão/Para sempre é sempre por um triz/ Ai, diz quantos desastres tem na minha mão/Diz se é perigoso a gente ser feliz”. Essa música é a gente querendo descobrir quem está escondido atrás da maquiagem, o que há atrás da atriz. O que mora atrás do faz-de-conta nos incomoda... É assombrosa de tão linda.
O palhaço chega com voz feminina! Magnifíco! Jane Duboc é dona da “Valsa do Clowns”, na comédia mais triste do circo. Nem no Circo Místico o palhaço consegue esconder o farrapo humano que dança nas cores e no nariz vermelho de sua fantasia. “A nova atração/ Tem um jovem coração/ Que apertado por estreito laço/ Amanhece partido/ Dentro dele sai mais um palhaço/ Que é um palhaço com o olhar caído”.
A vida fora lona é contada em coro em “Ópera do Casamento”. As rimas são as melhores, os metais os mais sintonizados e para um ouvinte desapercebido, a estória dura passa batido. Essa música mostra o lado conservador da vida “on the road”. As manchas no lençol, o guri que nasce apressado… Espaço para o imprevisto na vida circense parece que é só em cena…
E agora chegou a minha predileta! Num jazz que ganha um assanhamento perfeito na voz de Gal… Essa música me desmonta com sua malícia, com seu gozo…“Ele me comia/ Com aqueles olhos/ De comer fotografia/ E eu disse cheese/ E de close em close/ Fui perdendo a pose/ E até sorri, feliz”. Se estivesse no circo, essa seria minha música! Queria ser essa personagem… Que massa: ao 13 queria ser a bailarina, hoje, na boca dos 40 quero ser a estória de Lily Braun, a grande deslocadora que tinha no ventre um santo tatuado. Demais! Som delicioso. Nunca mais drink no dancing…
E após um canto gregoriano, “Meu Namorado” surge em meio de uma nuvem de incenso, como num presságio. É assim que funcionam os namorados… As palavras são cantadas uma a uma delicadamente, como devem ser os namorados. A melodia é tranquila, tudo sem pressa, com precisão e langor. Ah! Como são bons os namorados! “Vejo meu bem com seus olhos/ E é com os meus olhos que o meu bem me vê”. Entrosamento total. Astral.
É porque sempre é a perfeita do circo. Lembro que foi essa explicação que obtive do meu pai ao ficar encasquetada com a canção. Perfeição quase plástica, movimentos certeiros e gestos inequívocos que fazem riscos imaginários no ar. Acho um abuso ser bailarina! Um abuso de lindeza e ousadia. “Ciranda da Bailarina” mexe mesmo com o imaginário infantil feminino – música interpretada por crianças – sacada incrível. Ou será vice-versa?!
"I really want to see you/ I really want to be with you/ I really want to see you..." Estamos no Circo Místico e “Sobre Todas as Coisas” é o mantra. Mantra entoado por Gil, o mais cândido de todos. É o encontro da luz com a sombra: misto de religião com misticismo, do macho com a fêmea, do leite com o mel. Sobre essa música eu não quero falar. Te convido a ouví-la… E vá livre - sobre todas as coisas.
“Tatuador” vem para apaziguar ainda mais a nossa alma depois do mantra. Vem leve, com cores suaves e picadas encantadas. Num grande alívio de formas belas e sons calmantes.
Pé ante pé, sorrateira, “A Bela e a Fera” rasga o picadeiro com o nosso querido poeta-soul Tim Maia. Sua voz ardente crava entre sopros e poesias. “Tórax de Superman/ Tórax de Superman/ Coração de Poeta”. “A Bela e a Fera” é uma música de amor crua, feita com palavras triviais. Música onde letras de macarrão fazem poemas concretos e onde os canaviais esperam docemente pelo encontro dos corpos. Ah! O que falar disso tudo? “Abre teu coração/ Ou eu arrombo a janela”.
“Negro refletor/ Flores de organdi/ E o grito do homem voador/ Ao cair em si”. Uma voz melancólica e distante canta o “Circo Místico”. E a voz segue tranquila, descrevendo a magia desse planeta onde chove flor. "Duas meninas num imenso dragão". Pura fantasia. Misteriosa música de ninar.
Rapidinho e super alegre é o jeito que Chico Buarque e Edu Lobo juntam a lona e apagam as luzes do circo. “Mais um dia/ Mais uma cidade para se apaixonar”. Deixar a cidade escondido, como um amante, antes do dia clarear. E é esse o espírito de “O Grande Circo Místico”, que num rompante de felicidade vai arrancando sorrisos e deixando o bem querer.
E o que é um circo senão um sopro de surpresa em tempos de delicadeza?
[ANDRÉA]
Está lindo, delicado. Tem algo de felliniano aí, né?
ResponderExcluirPq
Meu caro PQ, vc foi subterfugiadamente citado, nao foi?
ResponderExcluirSaudades de vcs e daquela tarde de Ação de Graças!
Foi o melhor Dia de Ação de Graças da minha vida e o fato daquele ter sido o único não diz absolutamente nada doque ele realmente significou.
Beijos!