À esquerda, a primeira capa, branca após censurarem a capa original com Calabar escrito, e à direita, a capa de outras edições, com o nome Chico Canta |
Após serem citados três álbuns do
Chico Buarque no presente blog (um que eu mesmo tinha escrito – Construção), percebi
que certamente caberia mais. Um deles, em especial, merece uma atenção especial: Calabar (cujo nome foi censurado e ficou Chico
Canta).
Entre 1972 e 1974, em parceira
com Ruy Guerra, Chico Buarque escreve uma peça musical denominada “Calabar: o
elogio da traição” tendo como tema a vida de Domingos Fernandes Calabar, senhor
de engenho do início do século XVII que se aliou aos holandeses e que, por
isso, foi condenado e entrou na história (escrita pelos portugueses) como um
traidor.
Capa original censurada |
Na véspera da estreia da peça, a
Policia Federal censurou totalmente a sua apresentação, estendendo a proibição
à divulgação de que o espetáculo tinha sido proibido. Quanto ao disco com a
trilha do musical, o nome Calabar foi proibido. Por isso, o disco teve que
excluir seu nome e foi lançado apenas como “Chico Canta”. Muito mais do que
questionar versões oficiais e demonstrar que a história depende de quem a
escreve, a peça foi uma forma inteligente de questionar a própria ditadura que
o Brasil vivia no início da década de 1970.
O disco começa com uma canção
instrumental denominada “Prólogo”, para emendar em uma das minhas preferidas do
Chico: “Cala a Boca, Bárbara”, canção que apresenta as faces romântica e
política lado a lado. Como pessoalmente não conhecia o teor exato da peça
proibida, fui pesquisar sobre quem seria a personagem Bárbara e encontrei uma
análise muito interessante feita pela ensaísta Adélia Bezerra de Meneses,
professora de literatura da USP e da Unicamp e autora de dois livros que
dissecam a poética de Chico Buarque em entrevista à CULT ( ver http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/lirismo-e-resistencia-de-chico-buarque).
“O “Cala a boca” que marca a canção
estigmatiza a peça e os tempos que a geraram: remete ao mesmo silêncio imposto
de “Cálice” (= Cale-se) da época em a canção foi produzida, a década de chumbo
dos inícios dos anos 70, auge da ditadura militar; mas também remete a uma
imposição de silêncio, à proibição de pronunciar o nome de Calabar, personagem
da história colonial do Brasil, na época do domínio holandês, e que tinha sido
julgado pelos portugueses como traidor, executado e esquartejado, e condenado à
extinção de sua memória, o que implicaria a proibição de mesmo pronunciar o seu
nome (o que é infringido na canção, à força de repetição do refrão: CALA a boca
BARbara: CALABAR). E esse é um dos mais belos poemas eróticos da língua
portuguesa.”
A terceira é a bela “Tatuagem” (quero ficar no seu corpo feito tatuagem...
que é pra te dar coragem..pra seguir viagem...quando a noite vem..).
“Ana de Amsterdam”, que vem na sequência,
é outra música que retrata uma personagem da peça, no caso uma prostituta
holandesa que cruzou o oceano em busca de dias melhores. Ana de Amsterdam
reaparece na canção seguinte (“Bárbara”) em um tocante diálogo de amor entre as
duas: Bárbara... Bárbara..nunca é tarde,
nunca é demais. (...) Vamos ceder enfim à tentação das nossas bocas cruas
..E mergulhar no poço escuro de nós duas.”
As próximas duas (“Não existe
peca ao sul do Equador/ Boi Voador não pode”), gravadas juntas, são marchinhas
de carnaval levadas com muita alegria. A censura moralista novamente incomodou
e o Chico teve que trocar o verso “Vamos
fazer um pecado safado debaixo do meu cobertor” por “Vamos fazer um
pecado rasgado, suado, a todo vapor”. Anos depois, ao ser gravada
por Ney Matogrosso, atingiu grande popularidade.
“(...) Sabe, no fundo eu sou um sentimental...Todos
nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo... (além da sífilis,
é claro)...Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar,
trucidar. ..Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora. (...)”
“Fado Tropical” (com pequeno
trecho citado acima), tem, como o próprio nome diz, o tradicional ritmo
lusitano que dá nome à música, uma verdadeira poesia. Nesta há partes cantadas
por Chico Buarque, que se contrapõem aos lindos versos recitados por Ruy
Guerra. O resultado é belíssimo. Para variar, a censura novamente interferiu e
mandou suprimir a palavra “sífilis”. Na gravação final restou um breve silêncio
no lugar.
Depois do romantismo de “Tira as
mãos do mim”, “Cobra de Vidro” retoma a crítica política finalizando
sensacionalmente com vários Presta
Atenção com inegável tom policialesco.
“Vence na Vida quem diz sim” teve
a letra totalmente censurada, restando na primeira versão do disco apenas a
versão instrumental. Posteriormente, com a letra um pouco alterada, Nara Leão
gravou-a, com a participação do Chico Buarque.
Para fechar o álbum, a breve e
contundente “Fortaleza”: (...) minha
fortaleza é de um silêncio infame... Bastando a si mesma, retendo o derrame... A
minha represa”. Simples e forte ao mesmo tempo.
Sou obrigado a confessar que
quando comprei esse disco (em formato CD há uns 20 anos) e com o nome de “Chico
Canta” (com a sua foto de perfil na capa), desconhecia a sua história e até
mesmo o fato de que o nome era para ser “Calabar”. Mesmo assim sempre gostei
muito desse disco a ponto de, como muito bem lembrou a
Carol, ter sido o escolhido como trilha sonora para o primeiro café da manhã
que fiz para ela. Quanto à capa, tempos depois de ter sido lançado com a branca
ou ainda com o seu perfil, o disco finalmente teve sua capa original divulgada.
Pena que nos tempos atuais poucos compram CD ou vinil.
Sobre a influência dos anos de
chumbo, que se caracterizou pela forte repressão e censura na primeira metade da
década de 1970, em entrevista à Rádio Eldorado em 1989 (encontra-se em seu site
oficial www.chicobuarque.com.br)
Chico Buarque diz o seguinte:
“Existe alguma coisa de abafado, pode ser
chamado de protesto... eu nem acho que eu faça música de protesto....mas
existem músicas aqui que se referem imediatamente à realidade que eu estava
vivendo, à realidade política do país”.
De fato, fica evidente essa
relação e só temos a agradecer o Chico Buarque por ter transformado esses
graves obstáculos políticos em inspiração para compor e encantar. Triste é
constar que quarenta anos depois, Chico Buarque ao invés de lidar com estúpidos
censores de uma ditadura, tenha que aguentar os filhotes da ditadura que voltam
a perturbar todos aqueles que, como Chico Buarque, lutaram por um país mais
democrático. A esses, resta dizer um sonoro "Tire as Mãos de Mim!"
Para escutar esse verdadeiro
clássico da MPB pode-se utilizar o aplicativo de músicas Spotify: https://open.spotify.com/album/2HbAJZnA6a8orrEtZEooRH
Paul
Paul
Belíssima resenha!
ResponderExcluirUm beijo
[A]