segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Clube da Esquina: O álbum branco das Geraes (Milton Nascimento e Lô Borges, 1972)


Álbum branco, preto e azul, amarelo, vermelho e verde...


Álbum branco às avessas, concebido pra cá das montanhas, longe do mar, inventa o cais, inventa o mar, inventa em nós: o sonhador. Milton canta o Cais, que não é cais do velho chico mas o impossível cais das minas sem mar.


E se o Cais apresenta Minas, a faixa de abertura apresenta o Clube: tudo o que você consegue ser... ou nada! Tudo o que você podia ser tem uma levada meio folk e meio sertão. Centrada no violão tocado por Lô Borges, e que Toninho Horta comenta discretamente na guitarra (e eis aqui seu grande mérito):

há sol e chuva na sua estrada/mas não importa, não faz mal/ você ainda pensa e é melhor do que nada...


Mas essa história de álbum branco pode ser melhor explicada... Pode? Não sei, talvez seja só viagem minha, sei lá, porque o álbum é duplo. Arrisco ir mais além, invento também um cais: como o dos Beatles, é um álbum de congraçamento entre músicos e canções, aqui com a vantagem de que parece haver uma unidade se formando e não se desintegrando. Eu sempre tenho essa viagem de que o som de Minas é meio ecumênico (bem, nessa geração pelo menos). O resultado é supremo, o disco é repleto de canções memoráveis... O Trem Azul de Lô Borges (e Ronaldo Bastos, a palavra de Minas) em que até Elis embarcou, Saídas e Bandeiras, Cravo e Canela, samba-folk aos tambores de minas, San Vicente, Paisagem na Janela, Um Gosto de Sol, Nada Será Como Antes...


Se você quiser eu danço com você no pó da estrada / pó poeira, ventania... /se você deixar o sol bater em seus cabelos verdes / sol, sereno, ouro e prata/.../ eu danço com você o que você dançar.../ Se você deixar o coração bater sem medo!

Trechos da linda fábula de amor chamada Nuvem Cigana, de Lô Borges que pontua a melodia na guitarra, acompanhando o vocal cristalino de Milton, perfeito para as palavras de (mais uma vez) Ronaldo Bastos.


A instrumentação do disco é sublime... Os arranjos concebidos com muito bom gosto e, isso fica transparente na audição: muita curtição dos músicos... E o time é de fazer inveja. Além de Milton e Lô Borges, Beto Guedes toca baixo e eventuais guitarras, ao vice-versa de Toninho Horta (além de Tavinho Moura, outro que se ocupa das cordas); pianos, órgãos e demais teclados estão predominante a cargo de Wagner Tiso, isso pra ficar só no óbvio...


Ouça o resultado rock’n’roll das alterosas que foi conseguido no Girassol da Cor de Seu Cabelo, uma das minhas favoritas desde sempre, onde o piano dita o ritmo (qualquer semelhança com o Queen é mera coincidência? A banda de Freddy só lançaria seu primeiro disco no ano seguinte...).


Ou o Clube da Esquina no. 2 que é ainda uma melodia sem texto. Mas cá pra nós, é divina... A música ganharia letra tempos depois, já nem lembro em que disco. Ou será que foi uma opção gravá-la despalavrada? Acho difícil porque a letra é tão bonita...

O samba Me Deixa em Paz traz o convite luxuoso a Alaíde Costa que assume os vocais, enquanto que Trem de Doido, com a guitarra fuzz de Beto Guedes me lembra o som psicodélico, summer of love, ainda que a canção seja um tanto sombria.


Alguém que vi de passagem/ numa cidade estrangeira /lembrou os sonhos que eu tinha e esqueci sobre a mesa/ como uma pera se esquece/dormindo numa fruteira/ como adormece o rio/sonhando na carne da pera/ o sol na sombra se esquece dormindo numa cadeira.

Mas nada se compara a Um Gosto de Sol. Um das música mais lindas do século XX, não deixo por menos. A orquestração final, arranjado por Eumir Deodato e regida por Paulo Moura, é de arrepiar, uma espécie de bachiana brasileira com gosto de goiabada cascão e queijo de colônia.


Eu já estou com o pé nessa estrada/qualquer dia a gente se vê

ensaia o tom de despedida em Nada Será Como Antes, penúltima faixa deste disco maravilhoso e único, despedida que se completa com Milton cantando Ao Que Vai Nascer:

Na franja dos dias esqueço o que é velho, o que é manco/ e é como te encontrar/corro a te encontrar...


Fisicamente, nunca existiu a sede do clube. E nem precisava. A sede do clube está registrada em disco. A sede do clube sou eu. A sede do clube é quem deixar o coração bater sem medo.


[M]

11 comentários:

  1. Caramba, pensei que esse disco ja tinha sido publicado aqui. O problema dos classicos eh que quase tudo ja foi dito sobre eles. E vc conseguiu falar algo novo. Parabens! Ainda nao racionalizei o pq, mas discordo (de coracao, por enquanto) da interpetacao de ser um album branco deles. E talvez nem vc concorde direito, pq nem soube explicar rsrs
    Rolou um lance comunitario, eles morando numa casa em niteroi durante um ano, durante o qual o disco saiu. Entao a vibe era diferente. Mais de brodagem. Entao acho que ta mais prum coletivo (ta na moda isso, neh?), prum esquema hippie, coletividade (Novos Baianos), bem na moda na epoca, que pro album branco.
    Mas resenha boa eh aquela que mantem a gente lendo, mesmo (ou principalmente) quando discorda completamente dela. E principalmente q nos incita a ouvir o disco.

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  2. Que legal que você escreveu essa resenha! E ficou linda!
    Eu tinha ensaiado algumas linhas sobre o disco, mas nunca tive a ousadia de terminá-la.
    Acho que esse disco é algo entre o som e o silêncio. Te põem em silêncio, tamanha a grandeza.
    E minha resenha começava assim:

    No es que le falte
    el sonido,

    es que tiene
    el silencio.

    (Cinema Mudo -Fina García Marruz)

    Acho que essa poesia traduz um pouco o clube imaginário da esquina.
    Parabéns Méteus!
    [ANDRÉA]

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  3. Mas o álbum branco, o original também é comunitário! Acho que o fundamental é que no branco original, os músicos do clube de Liverpool (e alguns ilustres convidados) se debruçaram sobre as músicas de João, Paulo e Jorge (ok, e sobre Octopuss Garden também, porque não?) e deram o melhor de si. A inspiração era individual (o que confere enorme diversidade ao álbum branco) e a criação era coletiva (o que faz que, mesmo dentro dessa diversidade, o resultado tenha uma estranha coesão).
    O clube de esquina, nosso álbum branco e multicolor também me parece surgido da(s) inspiração(ões) individual(is) (ou biindividual, tssss) e da mesma forma construído coletivamente... Acho que esse é o ponto. É diferente de um disco que seja só de Milton, ou só de Lô, ou só do Beto Guedes, ainda que a sonoridade seja muito parecida (e eu escrevi isso na resenha da página do relâmpago elétrico...), aqui tem um astral diferente...
    Talvez a chave seja mesmo o silêncio, sonoramente destacado pela andréa... [M]

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    1. Hum, errata: Octopuss Garden é do Abbey Road, não? Mas tem alguma composição do Ringo no álbum branco também, não? Porque será raios que esqueci? [M]

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    2. Porque será raios que esqueci? [M]
      é a erva... [A]

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  4. Ah! E a capa? Não é magnífica? Taí, Andréa, esse assunto deixo pra você...

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    1. Não sou Andrea mas sou conterrânea dos meninos desta capa de disco. Olhe esta reportagem...a história é muito interessante. http://www.divirta-se.uai.com.br/html/sessao_19/2012/03/18/ficha_musica/id_sessao=19&id_noticia=50783/ficha_musica.shtml#.T2YUEPFjxOR.facebook

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    2. Excelente história, Serralinda...valeu a dica!
      Paul

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  5. O trecho final da música "Um gosto de sól" é da música "Cais",muito lindo mesmo.

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  6. A música "Clube da Esquina n.o 2" foi regravada com letra pelo próprio Lô Borges em seu disco "A Via Láctea" (1979), num outro arranjo genial e arrepiante, diga-se de passagem.

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