sábado, 31 de janeiro de 2009

Amor e Caos - Ana Cañas (2008)


É a primeira vez que acontece de um livro me lembrar um som. Lendo a “História do Olho” de Georges Bataille, muitas vezes a música de “AMOR E CAOS” da Ana Cañas me vinha à cabeça. O curto-circuito deve ter um motivo: acho o som desse cd estridente, um grito, quase uma necessidade. O filtro é poroso, passando quase todas as emoções. Ana Cañas brinca, assim como Simone e seu comparsa, personagens do livro.

Georges Bataille entra no mundo da literatura por sugestão de seu psicanalista: ele, paciente, era perturbado por suas altas fantasias eróticas e, sem saber o que fazer com elas, seu analista sugeriu que as colocasse no papel. Através da escrita, Bataille derivaria suas fantasias para o texto, fator decisivo para o processo de cura. Um livraço para quem gosta de literatura erótica.
Bem, a Ana Cañas parece fazer o mesmo. Sua música é um rasgo no marasmo de suas emoções e, por consequência, entra como uma flecha nas nossas. E isso é o que mais me atrai no seu som meio “jazzy” – essa capacidade que raspa o infantil, ao fazer um som que escuta e traduz seus próprios desejos.

“Mandinga Não” abre com uns sons deliciosos, já te preparando pro que vem! É uma música teimosa, um jogo: “Você diz sim/Mas eu digo não/Você, talvez/ Mas eu volto a dizer não”. É aquela dúvida que nos ronda, eu quero, eu não quero? Ah! Azar ou sorte. Cabo de guerra.
A Ana tem uma voz linda, usa e abusa, está confortável inventando sons. Parece que não tem medo, deixa tudo rolar. É envolvente com sua teia de arranjos e cordas.

“A Ana” é uma música que poderia ser “A Andréa”, “A Duda”, “A Gabi”, “O João”. Tantos versos simples, despretensiosos e verdadeiros. A primeira vez que ouvi me senti completamente identificada com “A Ana é azeda/ Mas é doce quando é doce/ A Ana é azeda/ Mas muito doce quando é doce”.
Ana Cañas abre fogo para o jogo de sedução, mostra o seu verso e reverso, tudo muito bem acompanhado por um violão e uma guitarra, que aparecem discretamente e docemente. Ana Cañas é dona aqui de uma música que poderia ser uma crônica, um rascunho desses que a gente faz na última folha do caderno espiral, sabe? E aí é que está sua graça.

“Vacina na Veia” é o máximo! O som é bonito, estoura como bolhas. A voz é transparente, quase líquida. Um balanço eletrônico na medida.
É uma contra-música: “Se você olhar pra trás e sentir uma saudade/ Não espere, não vacile/ Vá em frente e volte atrás”. É um som certeiro, rápido, que pede ação.
“Aqui não tem otária/ Só a mulher com a guarda em punho”. De novo o som me lembra o livro... A mulher numa posição “esperta”. E a história é assim: “The beauty of the sun/ By and by a cloud/ Takes all away”.

“Para todas as Coisas” é uma música de amor. De amor porque claramente é uma homenagem a “Diariamente” de Marisa Monte, ao Guimarães Rosa, à Clarice Lispector. Eu acho bem legal essas músicas que são feitas por associações livres. Acho a idéia legal, são geralmente letras cruas que trazem a fantasia do artista de querer sair da própria casca de artista.
A música seguinte “?” traz mais uma vez a dúvida. Linda! Uma mistura de dúvidas tão delicadas, tão humanas, tão infantis e ao mesmo tempo repleta de feminilidade.
“Como faz para musicar?/ Como faz pra não machucar?/Como faz para se libertar?”.
A melodia é um arraso... para cada pergunta, para cada como faz, tem um som de um baixo, que funciona como um companheiro, como o som daquela saliva difícil de engolir.
O movimento é super vivo: inicia discreto, quase sombrio e cresce, se ilumina, sugerindo vida. Tudo isso cantado por uma voz suave fazendo na voz dela, a tua.

“Cadê Você” chega rapidinha, me lembrando a Céu. Acho que essa é a minha favorita! É um som que se fosse uma imagem seria um quebra-cabeça, porque vai e volta, no movimento de tentativa e erro. Massa.
A banda tá forte, com um vigor, uma tensão especial. Ana Cañas é clara, pausada, segura a onda bonito e faz um som viajante. A música parece uma fuga, com gestos ágeis e que num ponto parece encontrar seu porto seguro. Que delícia de ouvir...
“Por isso me traga uma flor/ E faça o favor/ De não me irritar/ E conte uma bela história/ Se for confiante, vou acreditar”.
Se eu fosse você, ia correndo ouvir essa música!

“Devolve, moço/ Devolve, moço/ O meu coração pro bolso”. Foi o Dão que me contou da Ana Cañas, falou pra eu ouvir a música dessa paulista de voz bonita. “Devolve Moço” tem uma batida que é uma mistura jazz, dengo e tecno. E vem com o mesmo tom invocado, imperativo, provocador. Mas o jogo taí, o tom é provocador, mas o tema é sedutor. Essa é a novidade desse cd – Ana Cañas está se emancipando e achando o máximo esse processo! Ela vai e volta, brinca e fica brava, mostra as unhas e lambe. Testa as emoções e os limites. Sem fronteiras.
“Super Mulher” com sua anticapa voadora voa na mesma direção, mas com a alegria de trazer a chuva africana de Naná Vasconcelos . “Ela tem uma pantera/ Que arrasta na coleira/ Ela gosta dessa fera/ Porque é grande feiticeira/ E seduz os corações”. “Super Mulher” tem um som vibrante, ela tem aquela transa.

“They’ll stone you when you’re playing your guitar
Yes, but I would not feel so all alone
Everybody must get stoned”
(Rainy Day Women – Bob Dylan)

E Ana Cañas encerra seu disco na alma de Bob Dylan , pra gente nunca esquecer desse passado pulsante que insiste em trançar por nossas pernas.

[ANDRÉA]

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Pérola Negra - Luiz Melodia (1973)


O caminho para alguns discos está longe de ser óbvio. Enquanto que na maioria dos casos, você ouviu alguma coisa no rádio ou na casa de alguém ou conhece o artista (e confia nele) e aí você acaba comprando o disco, às vezes as coisas acontecem de forma diversa.

No final dos 80 eu entrei na universidade, achando que o mundo estava errado e que eu iria ajudar a salva-lo de alguma forma. Claro que eu não fazia idéia de “como”, mas achava que com o tempo descobriria. É claro que, conhecendo a discografia completa do Led Zeppelin, eu só poderia estar certo e, logo logo convenceria todo mundo disso. Mas quando nós temos 18, 20 anos, precisamos de uma pausa nesta árdua tarefa de salvar o mundo e nos dedicar um pouco ao sexo oposto. Claro que você não percebe isso na hora, mas rapidamente as prioridades se invertem e você acaba deixando a missão de salvar o mundo para os intervalos da missão de conquistar as chicas. E os intervalos vão se tornando cada vez mais raros e curtos... Enfim, eu achava que, tanto pra salvar o mundo, quanto quando estamos “amando” (ou a mando), Led Zeppelin me indicaria o caminho.

Tsc, tsc, tsc... É duro, é um golpe quase mortal e irrecuperável quando a tua primeira estratégia de ataque vai por água abaixo: Led Zeppelin?!?!... Você nunca ouviu Luiz Melodia?

Louis the fucking who? Eu deveria ter feito esta cara, esta frase, mas o golpe foi muito duro, as linhas inimigas já tinham minado meu ponto fraco. Quem mandou se meter a estudar ciências humanas? Viola recolhida, eu não tinha mais nada a declarar... Muito tempo depois fui me deparar com o estranho disco que trazia, na capa, o Melodia deitado numa banheira segurando o globo terrestre emoldurado por uma coleção de feijão preto cru.

Para apreciar um disco como este o sujeito não pode enxergar o mundo sob o prisma da discografia do Led, então levou muito tempo até eu chegar aqui. O disco é perfeito pra quem descobriu que não vai ajudar a salvar o mundo ou que Whole Lotta Love não é receita nem trilha pra conquistar qualquer garota. Pérolas são raras (e caras), e as negras então são o ó do borogodó. Este disco de ’73 é pérola negra em todos os sentidos. As letras são herméticas e a música é difícil de encaixar em categorias. Tem choro (a belíssima Estácio, eu e você que abre o disco), tem rock (Pra Aquietar, onde o título faz um jogo de palavras com a ilha de Paquetá, rock suingado e temperado por um lick de guitarra fuzz que não se ouvia muito por aqui), blues (Vale Quanto Pesa, uma baita música triste que não é blues no sentido clássico e termina orquestral, quase em festa), samba (Estácio, Holly Estácio, canção com o andamento mais lento onde aparece mais uma vez um de seus temas preferidos, a escola de samba do Estácio de Sá, música que ficaria perfeita na voz de Bethânia) e tem coisas que beiram o jazz (Objeto H e Absolutamente Morte, uma das minhas preferidas, só violão e a voz marcante do Melodia e poesia pra lá de difícil de entender... E dá pra entender porque que o “infalível” Led falhou naquele dia...). A música que dá nome ao disco é mais um blues a la Melodia e ficou célebre na voz de Gal Costa no famoso show A Todo Vapor (que viro disco e espero ver resenhado em breve, por aqui). O destaque fica mais uma vez pro arranjo que contrapõe voz e um naipe de sopros, e só. Ah, e o refrão que é das poucas frases que se entende no disco, mas que é de uma felicidade única: baby te amo, nem sei se te amo?!...

O disco segue com mais um blues de arranjo mínimo em Magrelinha, pra depois arrebentar com banda completa, metais e tudo que se tem direito na deliciosamente suingada Farrapo Humano, antes de voltar à jazzística Objeto H. E finaliza em Forró de Janeiro, que nem precisa dizer que tipo de música é. O que confere unidade ao disco é a voz única de Melodia, certa melancolia que às vezes é discreta e às vezes é explícita, quase suicida e, é claro, a ótima seleção de canções. Luiz Melodia foi durante muito tempo artista de década, pois lançava um disco a cada 10 anos. Isso antes de ser redescoberto nos anos 2000 e hoje parece que sai um disco ao vivo dele como se fosse um espirro.

Aquela noite terminou solitária pra mim, e eu abusei da bolacha ouvindo minha trilha oficial de fossa, Since I’ve been Loving You. O saldo positivo foi que, desde então o nome do Luiz Melodia não me saiu da cabeça, e hoje eu vejo que valeu a pena. [M]

Saúde - Rita Lee (1981)

O que fazer depois de 2 discos de sucesso em dois anos seguidos? A resposta parece óbvia: um terceiro disco de sucesso no terceiro ano. É assim que funciona a indústria fonográfica, ainda que o humor e criatividade dos artistas contratados nem sempre consigam acompanhar. Mas, para esta indústria fonográfica, pouco importa, o que vale mesmo é o saldo de vendas. Vamos examinar agora o outro lado da moeda, o lado do artista. Os dois discos de sucesso de Rita Lee, em 1979 e 1980 (resenhados aqui) tinham razão de ser: eram grandes coleções de canções inspiradas com arranjos criativos e modernos (pra época) e uma produção impecável. A somlivre não poderia deixar passar batido e em 1981 deveria vir outro campeão de vendas.

Saúde, de 1981, consegue realizar bem o lado da gravadora, mas deixa um pouco a desejar do ponto de vista das canções, mas ainda assim, vale a audição. Aqui, Rita está um pouco mais cansada (ainda que o disco apresente umas 3 ou 4 canções muito boas) e a repetição das mesmas fórmulas nos arranjos e na produção dos discos anteriores, faça este disco soar como uma “continuação” dos álbuns anteriores.

Rita clama quero mais: saúde! E esse grito pode até ser interpretado dentro deste contexto que contrapõe artista e gravadora, ainda que a intenção da letra seja claramente outra:
Me cansei de escutar opiniões / de como ter um mundo melhor ... Mas ninguém sai de cima / nesse chove não molha / eu sei que agora eu vou é cuidar mais de mim!...

Por sinal, saúde, a música que abre e dá o título ao disco, é o pop-rock perfeito que Rita e Roberto conseguem repetir aqui, com certa cara de novidade. Naquele tempo a gente pousava delicadamente a agulha sobre a bolacha preta de vinil e o “shhhhhhhh” chiado baixinho (mas perceptível) do diamante percorrendo os sulcos eram como uma introdução sonora aos discos. Então vem a introdução de Saúde (a música), acho que não consigo lembrar de outra introdução de música tão bonita quanto esta: a batida levemente disco acompanhada de uma sutil guitarra e um lick repetitivo de piano elétrico soam como uma preparação para a música que vai começar. De repente uma frase de guitarra vem como que apresentar Rita que entra em seguida, cantando firme: me cansei! De lero-lero! Dá licença mas eu vou sair do sério...

E a música mistura a batida disco com um guitarra stoniana, seguindo a sugestão que os próprios já haviam dado em Miss You (1978). Saúde tem um andamento que fica entre o lento e o acelerado e é uma delícia de ouvir. Fiquei anos sem ouvi-la, e acho que hoje gosto mais dela do que da primeira vez que ouvi.


Outro momento memorável é Banho de Espuma, que alia à letra sutilmente sacana de Rita Lee, um arranjo cheio de metais (assinado por Lincoln Olivetti, que também tocou o piano em Saúde), mudanças de andamento e uma bateria eletrônica (não sei se é, ou é tocada de maneira a parecer assim...) que era marca registrada nos discos típicos dos anos 80 “hooked on classics”, “ hooked on swing”... Além destas destacam-se Mutante, que apesar do nome não é referência aos Mutantes, mas uma linda balada romântica, cheia de sons espaciais de sintetizadores e uma percussão meio puxada pro latino, e mesmo assim a mistura fica de muito bom gosto. Atlântida também é outro bom momento. Aqui também vemos Rita e Roberto experimentando uma sonoridade nova, que não aparecia nos disco anteriores. A bateria “eletrônica” citada antes aqui vem mais forte, mais marcada (primórdios do bate-estaca), já que o arranjo é, sonoramente, mais limpo, mais econômico. Destacam-se Rita Lee que canta sussurrando, o acompanhamento rítmico de piano de Lincoln e a guitarra inspiradíssima que vou creditar a Roberto (apesar de que o encarte do disco não deixa claro quem tocou). Tititi é o momento rock’n’roll do disco, e foi até trilha de novela numa versão regravada por Virginie e sua banda Metrô. Boa canção, mas não chega nem aos pés de Ôrra Meu (´80) ou Papai me Empresta o Carro (´79), dos discos anteriores. Tatibitati é prova cabal de que Rita e Roberto estavam se cansando de todo esse troço (Rita Lee tinha virado mega star com direito até a especial de fim de ano na Globo). Mother Nature é a versão em inglês para Mamãe Natureza (´74, ver a resenha de Atrás do Porto...) e nada acrescenta a versão original, enquanto que Favorita foi cedida pra Roberto de Carvalho cantar, experiência que não se repetiria mais, graças a deus. Duas canções com cara de “estamos enchendo lingüiça pra fechar o disco e lançar antes do natal”, como de fato aconteceu e eu, o ganhei no natal de 1981. [M]

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Maria Bethania - Pirata (2006)

Entre os quatro baianos tropicalistas mais próximos (isto é, estou excluindo o Tom Zé), Maria Bethânia é sem dúvida a artista mais diferente. Talvez por isso até, seja menos popular que os outros três, e seja tão difícil encontrar um fã ardoroso seu. Eu mesmo, só conheci um. Chamava-se Alexandre e morava na rua 9 nos idos de 1987-88, por aí.


Com direção musical do violonista Jaime Alem, que se encarrega das cordas no disco, Pirata é um disco dedicado às águas, do mar e dos rios. Como de costume, Bethânia intercala poemas e/ou trechos de poemas com canções que evocam estes temas. História pra Sinhozinho de Dorival Caymmi é a primeira canção do disco, seguida por O Tempo e o Rio de Edu Lobo e Capinam. Nas duas a ênfase é na voz e interpretação de Bethânia, com o arranjo mínimo, acompanhada só ao violão. Todo cais é uma saudade de pedra declama a cantora antes de cantar os Argonautas do mano Caetano. Apesar de regravação, a canção é obrigatória devido à temática do disco: Navegar é preciso / Viver não é preciso... Se “preciso“ aqui vem do verbo precisar indicando necessidade ou do substantivo precisão que denotada certeza, talvez já tenha sido até esclarecido pelo autor, mas a dúvida torna a canção ainda mais bela. O arranjo com violão, baixo acústico e bandolim dá um belíssimo ar de fado, de Portugal...


Bethânia declama Perto de muita água tudo é feliz antes de Santo Amaro, samba em homenagem à terra natal. Aqui fica claro o cuidado na produção do disco, essas quatro músicas em seqüência dão um crescente de ritmo, de pique no disco. Depois vem a minha favorita, De Papo pro Ar. Clássico da música caipira (caipira mesmo!) acompanhada na viola por Jaime Alem, conta a vida boa do caipira que vive do rio da caridade alheia e não se incomoda com nada. Ou melhor, quase nada: Quando no terreiro faz noite de luar / E vem a saudade me atormentar / Eu me vingo dela, tocando viola de papo pro ar...


Fui quase injusto acima, pois Sereia de Água Doce é outra das músicas lindíssimas deste disco. Samba de autoria de Vanessa da Mata (Ei! Alguém tem que resenhar o disco Vermelho!?), mostra a sintonia de Bethânia com a novíssima geração de compositores, fazendo uma sutil e muito bem dosada mescla com canções da velha guarda.


Eu que Não Sei Quase Nada do Mar de uma levada meio espanhola também é da nova safra. Passando (bem) longe da minha lista de compositores favoritos, Ana Carolina e Jorge Vercilo assinam esta belíssima canção que parece sob medida para a sensual voz de Bethânia, como exige a letra carregada de erotismo. O arranjo traz um dos raros momentos orquestrais do disco. Segue A Saudade Mata a Gente, outro clássico de João de Barro e Antônio Almeida, desacelerando um pouco o bpm depois das duas anteriores, mais uma vez com arranjo bem suave centrado em violão em voz. De Antônio Almeida, Serenô segue na toada da canção anterior, ma um pouco mais bonita que aquela:

Minha vida, ai, ai ,a / È um barquinho, ai, ai, ai / Navegando sem vela, sem luz

Quem me dera, ai, ai, ai, quem me dera / O farol dos teus olhos azuis...


Segue o samba com batida de candomblé Memória das Águas e depois com Águas de Cachoeira de Jovelina Pérola Negra, samba de terreiro com cavaquinho e acompanhamento de palmas. Jaime Alem agrega várias Cantigas Populares, na faixa que leva o mesmo nome. Ainda que misture melodias distintas nos versos tirados de diferentes cantigas, a música apresenta uma unidade surpreendente. Bethânia declama Antonio Vieira e termina com A Coroa: voz solo, acompanhada no finalzinho por tambores e coral, tudo agregado com se fosse uma só canção.


Onde Eu Nasci Passa Um Rio é outra da safra antiga de Caetano e essa aqui é a interpretação definitiva de uma canção pouco conhecida da obra do baiano. O arranjo, mais uma vez se destaca, só violão, voz e cello, conferindo a esta bela canção o tratamento que ela merece. O verso o rio da minha terra deságua em meu coração é de arrepiar... Francisco, Francisco é uma bela canção em homenagem ao velho Chico, e o disco termina de maneira bastante pessoal com Meu Divino São José.


O encarte é outro destaque, com figuras feitas de bordados...

Tudo isso faz deste, o melhor disco dos quatro baianos desde O Estrangeiro (resenhado aqui) ou até mesmo, desde Velô (que mais dia, menos dia, vai acabar pintando também). Como canta em Memória das Águas:

Amores são águas doces

Paixões são águas salgadas

Queria que a vida fosse essas águas misturadas,


neste Pirata, Bethânia consegue misturar essas águas. [M]


Tem Mas Acabou - Pato Fu (1996)

O que é o Pato Fu? Qual é o som da banda? Que tipo de música eles tocam? Bem, se você acha que vai encontrar a resposta a essas perguntas aqui, ou, até mesmo, se você acha que estas perguntas são importantes, então pode pular pra próxima resenha.


Pato Fu é daquelas bandas que não se encaixam em lugar nenhum, e que não tem a menor preocupação com este encaixe e o som deles reflete muito bem isso. Ora pesado, acelerado e distorcido, ora eletrônico e cheio de samples, ora lento e suave... Tudo muito bem-humorado, já chegou a ser considerado pela própria Rita Lee como os legítimos sucessores dos Mutantes, e talvez este seja mesmo o parente mais próximo.


Um bom exemplo da mistureba total é a quarta faixa deste Tem, mas Acabou, de 1996. Capetão é pesada na guitarra, cheia de colagens musicais e tem uma participação (nem poderia deixar de ser) muito bem-humorada de André Abujamra. Voltando ao começo, o disco abre com Nós Mes, que é o auto-retrato da banda. É ouvir e continuar sem as respostas às suas perguntas, se você insistiu em ler até aqui. Em seguida, Água, traz o lamento de que mora no poeirão esperando a chuva e quando ela vem, o poeirão vira lama...


Pinga é o hit do grupo. Pelo menos aqui em casa. As crianças adoram e virou a trilha oficial do nosso carro em viagens mais longas. É daquelas músicas que as crianças pedem pra repetir e cantar junto o refrão homenagem à seleção de 70:


Se eu fosse Pelé, tomava café

Se eu fosse Tostão, tirava o calção

Se eu Fosse Dario, pulava no rio

Se eu fosse Garrincha, não pulava não.


A quinta faixa é O Peso das Coisas, que, apesar do nome traz a suavidade da Fernandinha Takai nos vocais (numa época em que eles ainda dividiam os vocais entre ela e John), numa balada pop no estilo ‘essa é pra tocar no rádio’ da banda. Segue Tchau Tô Indo Já Fui, com John cantando, o que nos dá a certeza de que a decisão de deixar todos os vocais a cargo de Fernanda foi uma decisão muito acertada (ainda que tenha demorado muito a acontecer, eles ainda gravaram uns quatro discos com John cantando...). Mas a música é boa, não destoa do resto do álbum, de forma alguma. Céreblo é canção protesto a la Pato Fu, o que significa: não espera qualquer semelhança com o Chico Buarque. Assim como Nuvens é bossa nova a la Pato Fu (precisa repetir a advertência?), com Fernanda cantando (talvez tenha vindo daí a idéia do Nelson Motta de gravar um disco homenageando a Nara Leão, ver postagens anteriores).


Little Mother of the Sky apesar do nome é cantada em português por John e tem um lickzinho muito bem executado pelo mesmo. Porque Te Vas é outro ponto alto do disco. Cover da música que fez sucesso num filme espanhol da década de setenta (Marcelino Pan e Vino? Não me lembro...) aqui recebe uma interpretação e arranjo que a transformam numa música autoral. A levada ligeira com base no trio clássico de guitarra (inspiradíssima aqui), baixo e bateria recebe o acompanhamento de um naipe de metais bem latino com Fernanda detonando na voz. Perfeita!


O disco segue legal, mas depois dessa música é inevitável perder um pouco o pique. 1 de Vocês, Lá se Vai, Dentro/Fora e Feliz Ano Novo fecham o disco com bons arranjos, boas passagens de guitarra, Fernanda cantando (que é sempre uma delícia...) mas nenhuma canção excepcional como Pinga, Água ou Porque te Vas. Não foi seu primeiro disco, mas este apresentou definitivamente a banda e sua graciosa vocalista. [M]

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Gal Costa - Coisa mais linda que existe!





Gravado em 1968 para ser lançado em 1969 durante um dos períodos mais pesados da ditadura militar, o primeiro disco solo da Gal Costa pode estar longe de ser um dos mais marcantes da sua carreira, mas para mim trata-se sim de um registro histórico que merece constar dessa lista, ainda que por motivos pessoais.

Contrastando com o período tenso politicamente, que resultou no exílio dos colegas tropicalistas Caetano e Gil, Gal acaba optando por um disco que ainda cultivava suas raízes tropicalistas, a começar pela direção do maestro Rogério Duprat e temáticas ao mesmo tempo leves e provocativas.

Começando com “Não Identificado”, belíssima canção de Caetano Veloso que também gravou no disco próprio quase que paralelamente (já citado nesse blog), Gal já anuncia sua opção por “fazer uma canção de amor... para gravar num disco voador”. Confesso minha inveja pessoal, pois quisera eu ter a capacidade de compor uma canção de amor para alguém especial.

Em seguida, Gal passeia pelo xaxado em “Sebastiana”, para interpretar em seguida outra canção de Caetano, também gravada por ele no disco contemporâneo: “Lost in Paradise”.

Depois usa as metáforas típicas do tropicalista Tom Zé ao interpretar a aparentemente singela “Namorinho no Portão”, sem abrir mão da crítica velada ao momento político que o país atravessava:
Conheço esta onda...Vou saltar da canoa...Já vi, já sei que a maré não é boa....É filme censurado

Chega de Saudade! Em “Saudosismo”, interpreta novamente Caetano Veloso em uma bela homenagem à Bossa Nova.
Eu, você, nós dois
Já temos um passado, meu amor
Um violão guardado...Aquela flor
E outras mumunhas mais

As próximas marcam definitivamente sua opção pelo tom ao mesmo tempo romântico e provocativo, com a escolha de duas canções da dupla Roberto e Erasmo (que talvez admirados pela interpretação dela, no mesmo ano comporiam “Meu nome é Gal”, canção que marcou a sua carreira em seguida).

Primeiro com “Se você pensa”, uma espécie de recado à pessoa amada que se mantém indecisa:
É melhor pensar depressa e escolher antes do fim
Você não sabe e nunca procurou saber
Que quando a gente ama pra valer
O bom é ser feliz e mais nada, nada.
Recado dado, manteve a linha em “Vou recomeçar”
Não sei por que razão eu sofro tanto em minha vida
A minha alegria é uma coisa tão fingida
A felicidade já é coisa esquecida
Mas agora vou recomeçar
Não vou ser mais triste
Vou mudar daqui pra frente

O importante é a vida aproveitar... e recomeçar.

Atenção menina! ...É Preciso estar atento e forte!
Em “Divino e Maravilho”, de Caetano e Gil, a mensagem está claramente contextualizada. Essa canção inicia a seqüência de três que tornaram-se clássicas dela.

“Que Pena”..ela já não gosta mais de mim. Na canção de Jorge Ben, Gal faz parceria belíssima com Caetano para estabelecer um belo diálogo. O importante, novamente, é a volta por cima em alto estilo ao sair de uma relação:
Mas eu não vou chorar
Eu vou é cantar
Pois a vida continua

Mantendo a dupla com Caetano, segue com “Baby”, clássico incluído nesse disco após o sucesso no disco “Tropicália ou Panis et Circenses”, mas com um arranjo levemente diferente, em que sobressai um som orquestral. Majestoso!
Você precisa saber da piscina
Da margarina
Da Carolina
Da gasolina
Você precisa saber de mim


Em “Coisa mais linda que existe”, de Gil e Torquato Neto, Gal mantém o astral leve e carinhoso na dose certa.

Essa alegria, o perigo
Eu quero tudo contigo
Com você perto de mim (...)
Coisa mais linda que existe... é ter você perto de mim

Considero essa passagem uma pérola: simples, que emociona.

O disco termina com “Deus é Amor” com a batida típica de Jorge Ben, cujo primeiro refrão me
faz recordar passagens recentes na minha vida:
Todo mundo vai embora
Pois a chuva não quer parar
Ninguém mais quer ficar
Só eu, sozinho, vou me molhar.
Mas eu tenho fé... que a chuva há de passar


Enfim... com a sua voz afinadíssima e belos arranjos, esse disco marcou de modo definitivo, para mim, o ingresso da Gal entre as maiores cantoras desse país.
[Paul]